segunda-feira, 21 de julho de 2014

A DOUTRINA BÍBLICA DA TRINDADE



Por
Benjamin Breckinridge Warfield









Dr. Benjamin Breckinridge Warfield
(5 Novembro de 1851 - 16 de Fevereiro 1921)



1.    O TERMO “TRINDADE”

A expressão “Trindade” não é uma expressão bíblica, nem usamos linguagem bíblica quando definimos o que ela expressa como sendo a doutrina de que há um só Deus verdadeiro, mas que na unidade da Divindade existem três Pessoas co-eternas e co-iguais, iguais em substância, mas distintas em subsistência. Uma doutrina assim definida só pode ser considerada como doutrina bíblica, desde que aceitemos que o sentido da Escritura é também Escritura.
E a definição de uma doutrina bíblica, em linguagem tão alheia à Bíblia, só se pode justificar se aceitarmos o princípio de que é melhor conservar a verdade das Escrituras do que as palavras das Escrituras. A doutrina da Trindade está, sem solução, nas Escrituras: ao se cristalizar dos seus solventes, não deixa de ser bíblica, mas surge mais claramente. Ou, para não falar em linguagem figurada, a doutrina da Trindade é-nos apresentada nas Escrituras, não numa definição formulada, mas em alusões fragmentárias; quando reunimos os disjecta membra na sua unidade orgânica, não estamos abandonando as Escrituras, mas estamos, sim, entrando mais completamente no significado dessas Escrituras. Podemos apresentar a doutrina em termos técnicos, provida pela reflexão filosófica; mas a doutrina apresentada é uma doutrina genuinamente bíblica.

2.    APENAS UMA DOUTRINA REVELADA

Na verdade, a doutrina da Trindade é, simplesmente, uma doutrina revelada. Isto é, incorpora uma verdade que nunca foi descoberta pelo raciocínio humano e que não pode ser descoberta, desta forma. Por muito que busque, o homem nunca foi capaz de esquadrinhar, de per si, as cosias profundas de Deus. Por isso, o pensamento étnico nunca atingiu uma concepção trinitariana de Deus, nem mesmo nenhuma religião étnica apresenta, em sua representação do Ser Divina, qualquer analogia com a doutrina da Trindade.
Há, sem dúvida, tríades de divindades em quase todas as religiões politeístas, formadas através de influências várias. Por vezes, como acontece com a tríade egípcia de Osíris, Íris e Hórus, é a analogia da família humana de pai, mãe e filho que está na sua base. Por vezes, são o resultado de mero sincretismo: três divindades adoradas em localidades diferentes que são reunidas numa adoração comum. Por vezes, como na tríade hindu de Brahma, Vishnu e Shiva, representam o movimento cíclico duma evolução panteísta, e simbolizam as três fases do Ser, Torna-se e Dissolução. Por vezes, são, aparentemente, o resultado de nada mais do que uma excêntrica tendência humana de pensar em grupos de três, o que deu ao número três uma posição muito comum de número sagrado (segundo H. Usener). Não se podia esperar outra coisa que uma ou outra destas tríades fosse apresentada, de quando em quando, como sendo uma réplica (ou mesmo original) da doutrina cristã da Trindade. Gladstone encontrou a Trindade na mitologia homérica, tendo o tridente de Poseidon como símbolo. Hegel a encontrou, muito naturalmente, na Trimurti Hindu, que é, na verdade, muito semelhante à sua noção panteísta da Trindade.
Outros houve que a descobriram na Triratna Budista (Söderblom); ou (não obstante o seu dualismo rude) em algumas das especulações do Parseísmo; ou, mais frequentemente, na tríade imaginária do Platonismo (por exemplo, Knapp); enquanto que Jules Martin está absolutamente convencido de que ela está presente na doutrina neo-estóica de Filo dos “poderes”, em especial quando aplicada à explicação dos três visitantes de Abraão. Nos últimos anos, a atenção tem-se concentrado antes na Babilônia, e H. Zimmern pensa que os antecedentes da Trindade se encontram num Pai, Filho e Intercessor, que diz ter descoberto na sua mitologia. Não deve ser necessário dizer que nenhuma destas tríades tem a mínima semelhança com a doutrina cristã da Trindade. A doutrina cristã da Trindade incorpora muito mais do que a mera noção de “três”, e além dessa noção de “serem três”, essas tríades nada têm em comum com ela.

3.    NÃO HÁ PROVA RACIONAL PARA A DOUTRINA

 Visto que a doutrina da Trindade não pode ser descoberta pelo raciocínio, também não pode ser provada por meio da razão. Não há analogias para ela na natureza, nem mesmo na natureza espiritual do homem, feito à imagem de Deus. Deus é único na Sua maneira de ser trinitária; e, como não há nada no universo semelhante a Ele, neste respeito, nada há que nos possa ajudar na Sua compreensão. Apesar disso, têm-se feito muitas tentativas para edificar uma prova racional da Trindade da Divindade. Há, entre elas, duas que são extremamente atraentes, e que, portanto, têm sido constantemente apresentadas por pensadores especulativos, em toda a era cristã. Estas derivam das implicações, num dos casos, da autoconsciência; no outro, do amor. Tanto a autoconsciência como o amor, diz-se, requerem, para a sua própria existência, um objeto para o qual o ser existe como sujeito. Se concebemos Deus como auto-cônscio e amante, não podemos deixar de O conceber como abrangendo, na Sua unidade, por esse motivo, alguma forma de pluralidade. A partir dessa posição geral, se têm elaborado, porém, estes dois argumentos, por vários pensadores, de formas muito variadas.
Por exemplo, o primeiro deles foi desenvolvido pelo grande teólogo do século XVII, Bartolomeu Keckermann (1614), da seguinte maneira: Deus é o pensamento cônscio; e o pensamento de Deus deve ter um objeto perfeito, existindo, eternamente, perante ele; este objeto, para ser perfeito, tem que ser, ele mesmo, Deus; e, como Deus é um, este objeto, que é Deus, deve ser o Deus que é um. É, essencialmente, o mesmo argumento que foi divulgado num famoso parágrafo (§ 73 de “The Education of the Human Race”, de Lessing): “Não deve Deus ter uma representação absolutamente perfeita de Si mesmo, isto é, uma representação na qual se deve encontrar tudo quando n’Ele se encontra? E encontrar-se-ia tudo quanto está em Deus nesta representação, caso a Sua realidade necessária se encontrasse nela? Se tudo, tudo sem exceção, que está em Deus, se encontra nesta representação, ela não pode, portanto, ser apenas uma mera imagem vazia, mas tem que ser uma duplicação real de Deus”.
 É evidente que semelhantes argumentos provam demasiado. Se a representação de Deus, de Si mesmo, para ser perfeita, tem que possuir a mesma espécie de realidade que Ele próprio possui, não parece fácil negar que a Sua representação de tudo o mais deve possuir realidade objetiva. E isto seria o mesmo que dizer que a coexistência objetiva e eterna de tudo quanto Deus pode conceber está presente na própria ideia de Deus; e isto não passa de panteísmo. O erro lógico está na inclusão, na perfeição duma representação, de qualidades que não pertencem a representações, ainda que perfeitas.
 Evidentemente, uma representação perfeita deve possuir toda a realidade pertinente a uma representação; mas a realidade objetiva é tão pouco própria duma representação que uma representação que a adquirisse deixaria de ser uma representação. Este erro fatal não é excedido, mas apenas dissimulado, quando o argumento é comprimido, como acontece na maioria das suas apresentações atuais, e se afirma, meramente, que a condição da autoconsciência é uma distinção verdadeira entre o sujeito pensante e o objeto pensado, o que, no caso de Deus, seria entre o ego sujeito e o ego objeto. Porém, é difícil de entender porque se há de negar a Deus o poder de autocontemplação, gozado por todos os espíritos finitos, a não ser à custa da hipostatização deliberada do contemplante e do contemplado. Nem, mesmo, é sempre claro que o que conseguimos é uma hipostatização distinta que não uma substancialização distinta do contemplante e do ego contemplado: não tanto, duas Pessoas na Divindade, como dois Deuses. A descoberta de uma terceira hipóstase — o Espírito Santo — continua a ser, no entanto, perante todas as tentativas de construir uma Trindade no Ser divino, um enigma permanente, que encontra, apenas, uma solução artificial.
 O caso é muito semelhante no argumento derivado da natureza do amor. A nossa simpatia vai para esse antigo escritor valenciano — talvez o próprio Valentino — que raciocinava — talvez fosse mesmo ele o primeiro a assim racionar — que “Deus é todo amor”, “mas amor não é amor, a menos que haja um objeto para esse amor”. E vai ainda mais abundantemente para Agostinho, quando buscando uma base, não para uma teoria de emanações, mas para a doutrina da Trindade, analisa este amor que Deus é, na tripla implicação de “o amante”, “o amado” e “o próprio amor”, e descobre, neste trinário de amor, um análogo com o Deus Triuno.
 Porém, é necessário, apenas, que este argumento, assim apresentado duma maneira geral, seja desenvolvido nos seus pormenores, para a sua artificialidade se tornar evidente. Ricardo de S. Vitor elabora-o da seguinte maneira: é da natureza de amor que se volte para outro como caritas. Este outro, no caso de Deus, não pode ser o mundo, visto que este amor do mundo seria anormal. Só pode ser uma pessoa; e uma pessoa que seja igual a Deus, em eternidade, poder e sabedoria. Porém, visto que não pode haver duas substâncias divinas, estas duas Pessoas divinas devem formar uma e a mesma substância. Contudo, o amor mais perfeito não se pode limitar a estas duas pessoas; tem que se tornar condilectio pelo desejo de que um terceiro seja igualmente amado, como eles se amam um ao outro. Deste modo, o amor, quando concebido perfeitamente, leva, necessariamente, à Trindade, e visto que Deus é tudo quanto ele pode ser, esta Trindade tem que ser real. Escritores contemporâneos (Sartorio, Schöberlein, J. Müller, Liebner e, mais recentemente, R. H. Grützmacher) não parecem ter melhorado muito semelhante declaração. E, depois de dizer tudo isto, não parece muito claro que o próprio Ser, absolutamente perfeito, de Deus, não pudesse fornecer um objeto satisfatório do Seu todo perfeito amor. Dizer que amor e, por sua própria natureza, auto-comunicativo, e que, implica, portanto, um objeto fora de si mesmo, parece ser um abuso de linguagem figurada.
 A prova ontológica da Trindade não deve ter sido apresentada de forma mais atraente em parte alguma, como o foi por Jonathan Edwards. A particularidade da sua apresentação esta numa tentativa de lhe dar uma certa plausibilidade, por meio duma doutrina da natureza de ideias espirituais ou ideias de coisas espirituais, como seja, pensamento, amor, terror, em geral. Ideias destas coisas, afirma, são apenas suas repetições, de modo que aquele que tiver uma ideia de qualquer ato de amor, de temor, ou de ira, ou de qualquer outro ato ou movimento da mente, nada mais faz do que repetir o movimento em questão; e se a ideia for perfeita e completa, o movimento original da mente é reduplicado, em absoluto. Edwards leva isto tão longe, que está pronto a contender que, se um homem pudesse ter uma ideia absolutamente perfeita de tudo quanto estivesse em sua mente, em qualquer momento do passado, ele seria de novo, na verdade e para todos os efeitos, aquilo que foi naquele momento do passa do. E se ele pudesse contemplar, perfeitamente, tudo quanto está na sua mente, em dado momento, tal como é, na sua primeira e direta existência, ele seria, na realidade, dois, nesse momento, ele seria duas vezes, ao mesmo tempo: “A ideia que ele tem de si mesmo seria ele mesmo, de novo”. É este o caso com o Ser divino. “A ideia que Deus tem de Si mesmo é absolutamente perfeita, e, portanto, é Sua imagem, expressa e perfeita, exatamente como Ele, em todos os sentidos... Mas aquilo que é a imagem expressa e perfeita de Deus, e como Ele em todos os sentidos, é Deus, para todos os efeitos, visto que nada Lhe falta; nada há na Divindade que a torne Divindade senão o que tem algo exatamente correspondente a ele nesta imagem, o que, portanto, a tornará, igualmente, Divindade”.
A segunda pessoa da Trindade surgindo, assim, o argumento continua: “Sendo assim gerada a Divindade por Deus amar (ou ter) uma ideia de Si mesmo, manifestado, numa Subsistência ou Pessoa distinta, nessa ideia, procede daí um ato puríssimo, e surge entre o Pai e o Filho uma energia infinitamente santa e sagrada, amando-Se e deleitando-Se mutuamente... A Divindade torna-se inteiramente ação, a própria essência divina surge e é, como que, escalada em amor e alegria. De forma que a Divindade nela se destaca numa outra maneira ainda de Subsistência, e eis que surge a Terceira Pessoa da Trindade, o Espírito Santo, ou seja, a Divindade em ação, pois não há nenhum outro ato senão o ato da vontade”. É evidente a falta de lógica deste raciocínio. A mente não consiste nos seus estados, e a repetição dos seus estados, portanto, não a duplicaria nem triplicaria. Se o fizesse, teríamos uma pluralidade de Seres, e não de Pessoas num Ser. Nem a ideia perfeita de Deus acerca de Si próprio, nem o Seu amor perfeito por Si mesmo, O reproduz. Difere da Sua ideia de Si e do Seu amor por Si, precisamente por aquilo que distingue o Seu Ser dos Seus atos. Quando se diz, pois, que nada há na Divindade que a torne Divindade, que não tenha algo que lhe corresponda na sua própria imagem, basta replicar — exceto a própria Divindade. O que falta à imagem, para a tornar uma segunda Divindade, é, precisamente, realidade objetiva.

4.    A RAZÃO DÁ APOIO À DOUTRINA

Inconcludente que seja todo o raciocínio tal como este, é, contudo, considerado como uma demonstração racional da realidade da Trindade, não deixa de ter valor. Mostra-nos, de forma sugestiva, a superioridade do conceito trinitário de Deus, em relação à Sua concepção como uma mónada abstrata, e, assim, traz um apoio racional, importante, à doutrina da Trindade, uma vez que esta doutrina nos foi dada por meio da revelação. Se não é inteiramente possível dizer que não podemos conceber Deus como uma autoconsciência eterna e como amor eterno, sem O conceber como uma Trindade, não nos parece absolutamente necessário dizer que, ao concebê-Lo como uma Trindade, se dá uma major riqueza, amplitude e força à nossa concepção que d’Ele temos, como um Ser autoconsciente e amoroso, e portanto, concebemo-Lo muito mais adequadamente do que sendo uma simples mónada, e nunca ninguém que O tenha concebido como uma Trindade, ficará,  jamais, satisfeito com um conceito monadista de Deus. Desta maneira, a razão não só exerce o importante serviço, negativo, a fé na Trindade, demostrar a auto-coerência da doutrina e a sua coerência com toda a verdade conhecida, como lhe apraz este apoio racional positivo, de descobrir nela a única concepção adequada de Deus, como um espírito auto-consciente e como amor vivo.
Portanto, por mais difícil que a ideia da Trindade seja, em si, não nos vem como mais um fardo para a nossa inteligência; traz-nos, pelo contrário, a solução para as dificuldades mais profundas e persistentes da nossa concepção de Deus como um Ser moral infinito, e ilumina, enriquece e eleva todo o nosso pensamento acerca de Deus. Tornou-se, pois, vulgar afirmar que o Teísmo cristão é o único teísmo estável. Isto é o mesmo que dizer que o teísmo requer a concepção enriquecedora da Trindade, para lhe dar uma influência permanente sobre a mente humana (porquanto a mente encontra dificuldade em descansar na ideia de um Deus que seja uma unidade abstrata); e que o coração humano clama pelo Deus vivo, em cujo Ser existe essa plenitude de vida que, só a concepção da Trindade oferece.

5.    NO VELHO TESTAMENTO NÃO É REVELADA CLARAMENTE

Sente-se tão fortemente, em certos círculos, que uma concepção trinitariana é essencial a uma ideia condigna de Deus, que há relutância, profundamente arraigada, em admitir que Deus jamais se fizesse conhecer de qualquer outra maneira que em forma de uma Trindade. A partir deste ponto de vista, é inconcebível que a revelação do Velho Testamento nada soubesse a respeito da Trindade. Deste modo, I. A. Dorner, por exemplo, raciocina como segue: “Se, porém, a fé do cristianismo universal é esta, se deve pensar de alguma maneira segundo o modo Trinitariano, para se ter uma concepção viva de Deus, tem de ser considerado como provável que há traços da Trindade no Velho Testamento, visto que a sua concepção de Deus é viva e histórica”. Se, realmente, existem tais traços no Velho Testamento, da ideia da Trindade, constitui um problema a resolver. Não podemos, certamente, falar, de uma forma geral, da revelação da doutrina da Trindade no Velho Testamento. É bem evidente que ninguém, dependendo apenas da revelação incorporada no Velho Testamento, conseguiu chegar à doutrina da Trindade. Se, porém, existem, nas páginas do Velho Testamento, formas de expressão, ou registros de acontecimentos, em que alguém, conhecendo já a doutrina da Trindade, poderia ver, relativamente bem, indicações sugerindo uma Trindade, é outro assunto.
Os escritores antigos descobriram intimações da Trindade em fenômenos como seja a forma plural do nome divino Elohim, no emprego ocasional de pronomes plurais em referência a Deus (“Façamos o homem à nossa imagem”, Gênesis 1:26; 3:22; 11:7; Isaías 6:8), ou de verbos plurais (Gen. 20:13; 35:7), em certas repetições do nome de Deus que parece distinguir entre Deus e Deus (Salmo 45:6,7; Oséias 1:7), nas fórmulas litúrgicas triplas (Num. 6:24,26; Isaías 6:2), numa certa tendência para hipostatizar o conceito de Sabedoria (Prov. 8), e especialmente no estranho fenômeno ligado com as aparições do Anjo de Jeová (Gen. 16:2-13; 22:11,16; 31:11,13; 48:15,16; Êxodo 3:2,4,6; Juízes 13:20-22).
A tendência dos autores mais modernos é fazer um apelo, não tanto a textos específicos do Velho Testamento, como ao próprio “organismo da revelação” no Velho Testamento, em que se pode discernir uma sugestão fundamental de “que todas as coisas devem a sua existência a persistência, a uma causa tripla”, tanto com referência à primeira criação como, com maior evidência, com referência à segunda criação. Passagens são apresentadas como Salmo 33:6; Isaías 61:1; 63:9-12; Ageu 2:5,6, em que Deus e a Sua Palavra e o Seu Espírito são apresentados em conjunto, como causas comuns de consequências. Indica-se a tendência, por um lado, para hipostatizar a Palavra de Deus (por exemplo em Gen. 1:3; Sal. 33:6; 107:20; 147:15-18; Isa. 55:11); e, por outro lado, especialmente, em Ezequias, e nos profetas posteriores, o Espírito de Deus (por exemplo Gen. 1:2; Isa. 48:16; 63:10; Ezeq. 2:2; 8:3; Zac. 7:12).
Apela-se, também, para sugestões da divindade do Messias, como seja por exemplo, em Isaías 7:14; 9:6. E se se não insiste no aparecimento ocasional de verbos e pronomes plurais referindo-se a Deus, e na forma plural do nome Elohim, como sendo, em si, provas de uma multiplicidade na Divindade, dá-se-lhes, no entanto, um certo peso como um testemunho de que “O Deus da revelação não é uma unidade abstrata, mas o Deus vivo e verdadeiro, que, na plenitude da Sua vida, abrange a variedade mais elevada” (em Bavinck). O fim de tudo isto é que se sente, em geral, que, de qualquer forma, no desenvolvimento, no Velho Testamento, do conceito de Deus, existe uma certa sugestão de que a Deidade não e apenas uma simples mónada, e que se faz, assim, uma preparação para a vindoura revelação da Trindade. Parece evidente que devemos reconhecer, na doutrina do Velho Testamento da relação de Deus com a Sua revelação por meio da Palavra criadora e do Espírito, pelo menos o gérmen das distinções adentro da Divindade, mais tarde completamente manifestadas na revelação cristã. E mal podemos parar aí. Depois de dizer tudo, à luz da revelação posterior, a interpretação Trinitariana continua a ser a mais natural, considerando os fenômenos que os antigos escritores interpretavam, abertamente, como intimações da Trindade; especialmente, sem dúvida, os que estão relacionados com as descrições do Anjo de Jeová, mas também as formas de expressão como as que temos em “façamos o homem à nossa imagem” de Gênesis 1:26; pois, certamente, o versículo 27: “E Deus criou o homem à Sua imagem”, não nos encoraja a tomar o versículo anterior, como que anunciando que o homem iria ser criado à imagem dos anjos.
Isto não é uma leitura ilegítima das ideias do Novo Testamento no texto do Velho Testamento; apenas é a leitura do texto do Velho Testamento à luz da revelação do Novo. Podemos comparar o Velho Testamento com um salão ricamente mobilado, mas muito mal iluminado; a introdução de luz nada lhe traz que nele não estivesse antes; mas apresenta mais, põe em relevo com maior nitidez muito do que mal se via anteriormente, ou mesmo não tivesse sido apercebido. O mistério da Trindade não é revelado no Velho Testamento; mas o mistério da Trindade está subentendido na revelação do Velho Testamento, e aqui e acolá é quase possível vê-lo. Assim, a revelação de Deus no Velho Testamento não é corrigida, pela revelação mais plena que se lhe segue, mas é, simplesmente, aperfeiçoada, prolongada e ampliada.

6.    PREPARAÇÃO NO VELHO TESTAMENTO PARA A DOUTRINA

É um provérbio muito antigo que aquilo que se torna patente no Novo Testamento estava, de forma latente, no Velho Testamento. E é de suma importância que se não descure nem se obscureça a continuidade da revelação de Deus contida nos dois Testamentos. Se tivermos alguma dificuldade em ver, nós mesmos, no Velho Testamento, pontos de contato definidos da revelação da Trindade, não podemos deixar de ver, com muita nitidez, no Novo Testamento, provas abundantes que os escritores não sentiram qualquer incongruência entre a sua doutrina da Trindade e o conceito de Deus no Velho Testamento. Não há dúvida que os escritores do Novo Testamento não se sentiam cônscios de estarem “a apresentar deuses estranhos”. Perante a sua compreensão das coisas, adoravam e proclamavam apenas o Deus de Israel; e não salientavam menos do que o próprio Velho Testamento a Sua unidade (João 17.3; I Cor. 8:4; I Tim. 2:5). Não colocam, pois, dois deuses novos lado a lado com Jeová, como sendo semelhantes a Ele, dignos de ser servidos e adorados; concebiam Jeová, como sendo, Ele próprio, ao mesmo tempo, Pai, Filho e Espírito. Ao apresentarem este Jeová uno, como Pai, Filho e Espírito Santo, nem sequer mostram qualquer sentimento dissimulado, de que estavam a fazer uma inovação. Sem receio aparente, tomam as passagens do Velho Testamento e aplicam-nas, indiferentemente, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Compreendem, obviamente, a querem ser compreendidos, como apresentando no Pai, Filho e Espírito Santo, precisamente o mesmo Deus único que é o Deus da revelação do Velho Testamento; e estão muito longe de reconhecer qualquer quebra entre si e os Pais, ao apresentarem a sua concepção mais ampla do Ser Divino. Isto não é o mesmo que dizer que viam ensinada por toda a parte, no Velho Testamento, a doutrina da Trindade. Certamente, quer dizer que viam o Deus Triuno, a quem adoravam, no Deus da revelação do Velho Testamento, e não sentiam qualquer incongruência em falar do seu Deus Triuno, nos termos da revelação do Velho Testamento. O Deus do Velho Testamento era o seu Deus, e o seu Deus era uma Trindade, e a sua compreensão da identidade dos dois era tão completa, que não se levantava qualquer problema em suas mentes.

7.    A DOUTRINA PRESUME-SE NO NOVO TESTAMENTO

A simplicidade e certeza com que os escritores do Novo Testamento falam de Deus como uma Trindade têm, no entanto, ainda mais uma implicação. O fato de falarem d’Ele desta maneira não trair qualquer consciência de apresentarem novidade indica, sem dúvida, em parte, porque não era nada de novo falar assim de Deus. Por outras palavras, é evidente que, como lemos no Novo Testamento, não assistimos ao nascimento de um conceito novo acerca de Deus. O que encontramos nas suas páginas, é uma concepção de Deus, firmemente estabelecida, que se subentende e dá o seu tom a toda a ideia. Não é num texto, aqui ou ali, que o Novo Testamento testifica da doutrina da Trindade. Todo o livro é completamente Trinitariano; todo o seu ensino se ergue na suposição da Trindade; e as suas alusões à Trindade são frequentes, despreocupadas, fáceis e confiantes.
É, tendo em vista a naturalidade das alusões a seu respeito no Novo Testamento, que se tem dito que “a doutrina da Trindade não se ouve, senão acidentalmente, nas afirmações das Escrituras”. Seria mais correto dizer que não é tanto inculcada como pressuposta. A doutrina da Trindade não surge no Novo Testamento, em formação, mas já completa. Aparece já nas suas páginas, como diz Günkel, com um ar quase de queixa, “em estado de completa conclusão” (völlig fertig), sem deixar vestígios do seu crescimento. “Não há nada mais maravilhoso na história do pensamento humano”, disse Sanday, ao estudar o aparecimento da doutrina da Trindade no Novo Testamento, “do que a maneira silenciosa e imperceptível como esta doutrina, para nós tão difícil, ocupou o seu lugar, sem luta — e sem controvérsia —, entre as verdades cristãs aceites”. Porém, é simples a explicação deste fenômeno tão extraordinário. O nosso Novo Testamento não é um registro do desenvolvimento da doutrina ou de sua assimilação. Pressupõe, por toda a parte, a doutrina, como posse estabelecida da comunidade cristã; e o processo por que se tornou possessão da comunidade cristã, jaz por detrás do Novo Testamento.

8.    A DOUTRINA FOI MANIFESTADA NO FILHO E NO ESPÍRITO SANTO

Não podemos, portanto, falar da doutrina da Trindade, se estudarmos a letra com precisão, como sendo revelada no Novo Testamento, como não podemos dizer que ela foi revelada no Velho Testamento. O Velho Testamento foi escrito antes da sua revelação; o Novo Testamento, depois dela. A revelação, em si, foi feita, não por palavras, mas por obras. Foi feita na encarnação de Deus o Filho, e no derramamento de Deus o Espírito Santo. A relação dos dois Testamentos para com esta revelação é, num caso, a da sua preparação, e no outro, a do seu produto. A revelação, em si, está incorporada, apenas, em Cristo e no Espírito Santo. Isto é o mesmo que dizer que a revelação da Trindade foi incidental à execução da redenção e o seu resultado inevitável. Foi na vinda do Filho do Deus, na semelhança da carne do pecado, para se oferecer a Si mesmo com um sacrifício pelo pecado; e na vinda do Espírito Santo, para convencer o mundo do pecado, da justiça e do juízo, que a Trindade de Pessoas na Unidade da Divindade foi revelada, de uma vez para sempre, aos homens. Os que conheciam Deus o Pai, que os amava e deu o Seu próprio Filho para morrer por eles; e o Senhor Jesus Cristo, que os amava e se entregou a Si mesmo em oferta e sacrifício por eles; e o Espírito da Graça, que os amava e habitava neles, como um poder que não era eles mesmos, operando neles justiça; conheciam o Deus Triuno e não podiam pensar ou falar de Deus a não ser como Triuno. A doutrina da Trindade, por outras palavras, é apenas a modificação operada na concepção do único Deus em virtude da Sua completa revelação de Si mesmo, no processo redentor. Portanto, tinha, necessariamente, que esperar pela consumação do processo redentor para a sua revelação, e a sua revelação, pela mesma necessidade, ficou completa no processo redentor.
Podemos compreender, a partir deste fato central, mais completamente, várias circunstâncias ligadas com a revelação da Trindade a que se fez alusão. Podemos compreender daí, por exemplo, por que a Trindade não foi revelada no Velho Testamento. Talvez nos ajude um pouco se observarmos como tem sido costume observar, desde o tempo do Gregório de Nizâncio, que a revelação do Velho Testamento teve como tarefa principal fixar, de maneira firme, nas mentes e nos corações do povo de Deus, a grande verdade fundamental da Unidade da Deidade; e teria sido perigoso falar-lhes da pluralidade dentro desta unidade até que essa tarefa estivesse inteiramente cumprida. A verdadeira razão para esta demora na revelação da Trindade, porém, baseia-se no desenvolvimento secular do objetivo redentor de Deus: os tempos não estavam ainda maduros para a revelação da Trindade na unidade da Divindade, até a plenitude dos tempos terem entrado para Deus enviar o Seu Filho para redenção, e o Seu Espírito para santificação.
A revelação, por meio da palavra, teve que esperar pela revelação de fato, a qual traz, sem dúvida, a sua necessária explicação, mas da qual também deriva todo o seu significado e valor. A revelação de uma Trindade na Unidade Divina, como uma mera verdade abstrata sem qualquer relação como um fato patente, e sem qualquer significado para o desenvolvimento do Reino de Deus, teria sido estranha a toda a maneira de agir divina, como nos aparece nas páginas das Escrituras. Aqui, a operação do objetivo divino fornece o princípio fundamental perante o qual tudo o mais, mesmo as fases progressivas da própria revelação, é subsidiário; e os progressos na revelação estão sempre intimamente relacionados com a execução do propósito redentor. Porém, podemos igualmente compreender, do mesmo fato central, por que é que a doutrina da Trindade se encontra no Novo Testamento, mais em forma de alusões do que em ensino formal, por que é que se pressupõe, por toda a parte, aparecendo apenas aqui e acolá, num modo de expressão incidental, e não inculcada formalmente. É porque a revelação, tendo sido feita nas próprias ocorrências da redenção, se tornara já propriedade comum de todos os corações cristãos.
Falando e escrevendo uns aos outros, portanto, os cristãos falavam antes da sua consciência Trinitariana comum, e lembravam uns aos outros o seu fundo de fé comum, em vez de se instruírem uns aos outros naquilo que era já propriedade comum a todos. Devemos procurar, e acharemos, nas alusões feitas no Novo Testamento à Trindade, provas de como a Trindade, acreditada por todos, era concebida pelos mestres autorizados da Igreja, que não em tentativas formais, da sua parte, por meio de declarações autorizadas, para levar a Igreja à compreensão de que Deus é uma Trindade.

9.    EM TODO O NOVO TESTAMENTO A DOUTRINA É IMPLÍCITA

A prova fundamental de que Deus é uma Trindade é fornecida, assim, pela revelação fundamental da Trindade, como um fato: isto é, na encarnação de Deus o Filho e na efusão do Santo Espírito. Numa palavra, Jesus Cristo e o Espírito Santo são a prova fundamental da doutrina da Trindade. Isto é o mesmo que dizer que todas as provas, de qualquer espécie, e qualquer que seja a sua origem, de que Jesus Cristo é Deus manifesto na carne, e que o Espírito Santo é uma Pessoa Divina, são, igualmente provas da doutrina da Trindade; e que, quando procuramos no Novo Testamento provas da Trindade, devemos procurá-las, não meramente nas alusões à Trindade, como tal, por muito numerosas e instrutivas que sejam, mas, principalmente, em toda a multidão de provas que o Novo Testamento fornece da divindade de Cristo e da personalidade divina do Espírito Santo. Tendo dito isto, dissemos, com efeito, que todo o Novo Testamento é uma prova da Trindade. Porque o Novo Testamento está saturado com provas da Deidade de Cristo e da personalidade divina do Espírito Santo. O Novo Testamento é precisamente a documentação da religião do Filho encarnado e do Espírito que foi derramado, ou seja, da religião da Trindade, e o que queremos significar pela doutrina da Trindade, é nem mais nem menos do que a formulação, em linguagem exata, do conceito de Deus, como pressuposto na religião do Filho encarnado e do Espírito derramado.
Podemos analisar este conceito, e acrescentar provas a todos os elementos que o constituem, das declarações do Novo Testamento. Podemos mostrar que, por toda a parte, o Novo Testamento insiste na unidade da Divindade; que reconhece, constantemente, o Pai como Deus, o Filho como Deus, e o Espírito Santo como Deus; e que nos apresenta, com naturalidade, estes três como Pessoas distintas. Porém, não é necessário desenvolver aqui fatos tão evidentes. Contentar-nos-emos em observar, apenas, que, para o Novo Testamento, não há senão um único Deus vivo e verdadeiro; mas que para ele, Jesus Cristo e o Espírito Santo são, cada um deles, Deus, no sentido mais amplo da palavra; e, no entanto, o Pai, o Filho e o Espírito Santo estão uns para os outros, como Eu, Tu e Ele. Neste fato composto, Novo Testamento dá-nos a doutrina da Trindade. Porque a doutrina da Trindade não é mais do que a declaração, em linguagem cuidadosamente elaborada, deste fato composto.
Sempre, em todos os muitos esforços para formular esta doutrina, com precisão, que se seguiram uns aos outros durante toda a história da Igreja, na verdade, o princípio que sempre determinou o resultado foi a resolução de fazer justiça, ao conceber as relações do Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo, por um lado, a unidade de Deus, e, por outro lado, a Deidade verdadeira do Filho e do Espírito Santo, e às suas personalidades distintas. Portanto, ao dizermos estas três coisas — que há um só Deus; que o Pai, o Filho e o Espírito Santo, todos são Deus; que o Pai, o Filho e o Espírito são pessoas distintas —, enunciamos a doutrina da Trindade de forma completa.
O principal fato a ser notado é que esta doutrina perpassa todo o Novo Testamento, como sua pressuposição constante, e determina, por toda a parte, as suas formas de expressão. Não devemos deixar, explicitamente, de notar, porém, que, surgindo de quando em quando, uma oportunidade para a sua enunciação incidental, ela expressa-se numa declaração mais ou menos completa. As passagens em que as três Pessoas da Trindade são apresentadas juntas são muito mais numerosas do que, em geral, se imagina; dever-se-ia reconhecer que a colocação formal dos elementos da doutrina, com naturalidade, é relativamente rara, em escritos cuja origem a ocasional, e de natureza mais prática do que doutrinária no seu objetivo imediato.
As três Pessoas são vistas já como Pessoas divinas, no anúncio do nascimento de nosso Senhor: “Descerá sobre ti o Espírito Santo”, diz o anjo a Maria, “e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; pelo que também o Santo, que de ti há-de nascer, será chamado Filho de Deus” (Lucas 1:35; vd. Mat. 1:18 e sgs.). O Espírito Santo é o agente ativo na produção de um resultado, que é, também, atribuído ao poder do Altíssimo, e à criança que vem ao mundo é dada a grandiosa designação de “Filho de Deus”.
As três Pessoas são apresentadas diante de nós, com a mesma clareza, no relato de Mateus (1:18 e segs.), ainda que as alusões que lhes são feitas se encontrem dispersas numa narrativa mais comprida, durante a qual se alude duas vezes a Deidade da criança (versículo 21: “Ele salvará o Seu povo dos seus pecados”; versículo 23: “chamá-Lo-ão pelo nome de Emanuel, que traduzido é: Deus - conosco”). Na cena do batismo, que se encontra descrita por todos os evangelistas no começo do ministério de Jesus (Mat. 3:16, 17; Marcos 1:10, 11; Lucas 3:21, 22; João 1:32-34), as três Pessoas aparecem numa figura dramática em que a Divindade de cada um é fortemente salientada. Do céu aberto, desce o Espírito Santo em forma visível, e “uma voz veio dos céus: Tu és o Meu Filho, o Amado, em quem Me comprazo”. Parece, assim, que se teve cuidado de fazer da vinda do Filho de Deus ao mundo, também, a revelação do Deus Triuno, para que as mentes humanas pudessem ajustar-se, o mais suavemente possível, as pré-condições da redenção divina, que estava em vias de ser executada.

10.                     TODO O ENSINO DE JESUS FUNDAMENTADO
NA DOUTRINA

Tendo isto como ponto de partida, os ensinos de Jesus são trinitariamente fundamentados, de princípio ao fim. Ele diz muito acerca de Deus, Seu Pai, de Quem, como Filho, em certo sentido real, e distinto e com Quem é, ao mesmo tempo, Um, num sentido igualmente verdadeiro. E muito diz a respeito do Espírito Santo, que O representa, agora, da mesma maneira que Ele representa o Pai, e por meio do qual trabalha, tal como o Pai opera por Seu intermédio. Não é apenas no Evangelho de João, que surgem estas representações nos ensinos de Jesus.
Nos Sinópticos, da mesma maneira, Jesus arroga-se uma Filiação em Deus, que é única (Mat. 11:27; 24:36; Marc. 13:32; Luc. 10:22; nas seguintes passagens, o título “Filho de Deus” é-Lhe atribuído, e Ele o aceita: Mat. 4:6; 8:29; 14:33; 27:40; 43,54; Marc. 3:11; 15:39; Luc. 4:41; 22:70; vd. João 1:34, 49; 9:35; 11:27), e que implica uma comunhão absoluta entre os dois em conhecimento, palavra e poder: tanto Mateus (11:27) como Lucas (10:22) registram a Sua grande afirmação de que conhece o Pai, e o Pai O conhece a Ele, com um conhecimento mútuo perfeito: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho”. Também nos Sinópticos, Jesus fala em usar o próprio Espírito de Deus para realizar as Suas obras, como se a atividade de Deus estivesse ao Seu dispor: “Eu, pelo Espírito de Deus” — ou como Lucas tem: “Eu, pelo dedo de Deus” — “expulso os demônios” (Mat. 12:28; Luc. 11:20; vd. a promessa do Espírito Santo em Marc. 13:11; Luc. 12:12).

11.                     O PAI E O FILHO, NOS DISCURSOS EM JOÃO

É, porém, nos discursos registrados em João, que Jesus se refere, copiosamente, à Sua unidade, como Filho, com o Pai, e à missão do Espírito Santo, enviado da parte d’EIe mesmo, como o Dispenseiro das atividades divinas. Ele declara aqui, não só, muito diretamente, que Ele e o Pai são um (10:30; vd. 17:11,21,22,25), com uma unidade de interpenetração (“O Pai está em mim, e eu no Pai”, 10:38; vd. 16:10,11), de tal forma que vê-Lo era o mesmo que ver o Pai (14:9; vd. 15:21); mas Ele remove qualquer dúvida quanto à natureza essencial da Sua unidade com o Pai, afirmando, explicitamente, a Sua eternidade (“Antes que Abraão existisse, eu sou”, João 8:58), a Sua co-eternidade com Deus (“tinha Contigo antes que o mundo existisse”, João 17:5; vd. 17:18; 6:62), a Sua eterna participação na própria glória divina (“aquela glória que tinha Contigo” em comunhão, comunidade Contigo “antes que o mundo existisse”, 17:5).
É tão evidente, que, ao falar correntemente de Si mesmo, como Filho de Deus (5:25; 9:35; 11:4; vd 10:36), Ele queria dizer, de acordo com o significado que está por debaixo da ideia de filiação na maneira de falar semítica (baseada na implicação natural de que tudo o que o Pai é, isso o Filho é também; vd 16:15; 17:10), para se fazer a Si mesmo, como os Judeus perceberam, com a apreciação exata do significado do que Ele afirmava, “igual a Deus” (v. 18), ou, simplesmente, “Deus” (10:33).
Como é que Ele, sendo, assim, igual ou antes idêntico a Deus, estava no mundo, Ele o explica como envolvendo uma saída (exelthon) da Sua parte, não meramente da presença de Deus (apó, 16:30; vd. 13:3) ou da comunhão com Deus (pará, 16:27; vd. 17:8), mas do próprio Deus (ek, 8:42; 16:28). E, no próprio ato de afirmar, assim, que o Seu lar eterno se encontra nas profundidades do Ser Divino, Ele põe em relevo, com uma saliência tão grande quanto pode expressar-se por pronomes acentuados, a distinção pessoal entre Ele e o Pai. “Se Deus fosse o vosso Pai” diz Ele (8:42), “certamente me amaríeis: pois que eu saí, e vim de Deus, não vim de mim mesmo, mas Ele me enviou”. Diz, noutro lugar (16:26,27): “Naquele dia pedireis em meu nome: e não vos digo que eu rogarei por vós ao Pai; pois o mesmo Pai vos ama; visto como vós me amastes, e crestes que foi da comunhão com o Pai que eu saí; saí do Pai, e vim ao mundo”. Menos diretamente, mas, da mesma maneira, de forma clara, Ele afirma, de novo (17:8): “Eles têm verdadeiramente conhecido que foi de comunhão Contigo que eu saí, e creram que foste Tu que me enviaste”.
Não é necessário ilustrar mais amplamente uma forma de expressão, tão característica, dos discursos do nosso Senhor Jesus Cristo, registrados por João, que encontramos em todas as suas páginas: uma forma de expressão que reúne uma implicação clara de uma unidade do Pai com o Filho, que é uma identidade de Ser, com uma implicação, igualmente clara, de uma distinção tal de Pessoas entre Eles, que não só permite um jogo de emoções entre eles, como, por exemplo, de amor (17:24; vd. 15:9; 3:35; 14:31), mas, também, de uma ação e reação um para com o outro, que demonstra uma alta medida, se não de exterioridade, pelo menos de exteriorização. Assim, para dar apenas um exemplo dos fatos mais extraordinários dos discursos do nosso Senhor (não limitados, mesmo, aos registrados no Evangelho do João, mas encontra dos também nos Seus discursos nos Sinópticos, como, por exemplo, em Lucas 4:43 [vd. Marcos 1:38]; 9:48; 10:16; 4:34; 5:32; 7:19; 19:10). Ele apresenta-se, continuamente, como, por um lado, tendo sido enviado por Deus, e, por outro lado, como tendo saído do Pai (vd. João 8:42; 10:36; 17:3; 5:23, et saepe).

12.                     O ESPÍRITO SANTO, NOS DISCURSOS EM JOÃO

É mais importante afirmar que estes fenômenos de inter-relação não se
limitam ao Pai e ao Filho, mas estendem-se, também, ao Espírito Santo. Assim, por exemplo, num contexto em que o nosso Senhor sublinhara, da forma mais forte, a Sua unidade essencial e contínua interpenetração com o Pai (“Se vós me conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai”; “Quem me vê a mim, vê ao Pai”; “Eu estou no Pai, e o Pai está em mim”; “O Pai, que está em mim, é quem faz as obras”: João 14:7,9,10), lemos, assim (João 14:16-26): “E eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro [discriminado, assim, nitidamente, do nosso Senhor, como Pessoa distinta] Consolador [Advogado], para que Ele fique convosco para sempre, o Espírito de Verdade... Ele habita convosco, e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós... Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai... Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e nós (ou seja, tanto o Pai como o Filho) viremos para ele, e faremos nele morada... Tenho-vos dito estas coisas, estando convosco. Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito”.               
Seria impossível falar, de forma mais precisa, de três que eram, no entanto, um. O Pai, o Filho e o Espírito Santo se distinguem constantemente uns dos outros — o Filho pede ao Pai, e o Pai, em resposta a este pedido, dá um Consolador, “outro” que não o Filho, que é enviado no nome do Filho. E, apesar disso, a unidade destes três é tida em atenção, de tal maneira, que se fala da vinda deste “outro Advogado”, sem embaraço, como da vinda do próprio Filho (vs. 18,19,20,21); e, na verdade, como da vinda do Pai e do Filho (v. 23).
Há, portanto, um sentido em que, quando Cristo parte, o Espírito Santo vem em Seu lugar; há também, um sentido em que, quando o Espírito Santo vem, Cristo vem n’Ele; e, com a vinda de Cristo, vem também o Pai. Há uma certa distinção entre as Pessoas apresentadas; e, com ela, uma identidade entre elas; é necessário ter ambas em conta. Encontramos, em outros lugares, os mesmos fenômenos. Lemos, assim, noutro lugar: (15:26): “Mas quando vier o Consolador, que Eu, da parte do Pai [da comunhão com o Pai], vos hei-de enviar, aquele, o Espírito de Verdade, que procede do (comunhão com) Pai, Ele testificará de mim”. No âmbito só deste versículo, é intimado que o Espírito Santo é distinto, pessoalmente, do Filho, e, no entanto, é tal como Ele, tem o Seu lar eterno [em comunhão] com o Pai, de quem, a semelhança do Filho, procede, para realizar a Sua obra salvadora, sendo, no entanto, enviado para isso, neste caso, não pelo Pai, mas pelo Filho.
Esta última característica é salientada com maior ênfase numa outra passagem, em que a obra do Espírito Santo, em relação ao Filho, é apresentada como a par com a obra do Filho em relação ao Pai (16:5 e segs.). “E agora vou para Aquele que Me enviou... Todavia, digo-vos a verdade, que vos convém que Eu vá; porque, se Eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, se Eu for, enviar-vo-Lo-ei. E, quando Ele vier, convencerá o mundo... da justiça, porque vou para meu Pai e não me vereis mais... Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não podeis suportar agora. Mas, quando vier aquele Espírito de Verdade, Ele vos guiará em toda a verdade; porque não falara de Si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há-de vir. Ele Me glorificará, porque há-de receber do que é Meu, e vo-lo há-de anunciar. Tudo quanto o Pai tem é Meu; por isso vos disse que há-de receber do que é Meu e vo-lo há-de anunciar”. Vemos que aqui o Espírito é enviado pelo Filho, e vem para completar e aplicar a obra do Filho, recebendo toda a Sua comissão do Filho — porém, não em detrimento do Pai, porque, ao falarmos das coisas do Filho, é o mesmo que falarmos das coisas do Pai.
Não se deve dizer, evidentemente, que a doutrina da Trindade é formulada em passagens como estas, que formam toda a massa dos discursos do Senhor, no Evangelho de João; mas, sem dúvida, pressupõe-se nelas, a isto, do ponto de vista da sua força como prova, é muito melhor. Quando as lemos, estamos mantidos em contato permanente com Três Pessoas que agem, cada uma delas como uma Pessoa distinta, mas que são, num sentido profundo e essencial, um. Há um só Deus — nunca houve questão acerca disto — e, no entanto, este Filho que foi enviado ao mundo por Deus, não só representa Deus, como é Deus, e este Espírito Santo que, por Sua vez, o Filho enviou ao mundo, é, também, Ele mesmo, Deus. Nada podia ser mais claro, do que serem o Filho e o Espírito Santo, Pessoas distintas, a menos que, na verdade, o Filho de Deus, seja apenas Deus o Filho e o Espírito Santo de Deus seja apenas Deus o Espírito Santo.

13.                       A FÓRMULA BATISMAL

Entretanto, a maior aproximação a uma declaração formal da doutrina da Trindade, registrada como tendo saído dos lábios do nosso Senhor, ou, para dizer melhor, que se encontra em todo o conjunto do Novo Testamento, foi-nos conservada, não por João, mas por um dos sinópticos. E, contudo, também, introduzida apenas incidentalmente, e tem por objetivo primordial algo muito diferente da formulação da doutrina da Trindade. É incorporada na grande comissão, que o Cristo Ressurreto deu aos Seus discípulos, como “ordem de marcha”, “até aos confins da terra”: “Ide, pois, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os, em nome do Pai, e do Filho, do Espírito Santo” (Mateus 28:19).
Ao procurarmos avaliar o significado desta grande afirmação, temos que ter em mente a enorme solenidade da declaração de acordo com a qual devemos dar o máximo significado a cada uma das suas palavras. Porém, a fraseologia é, a todos os títulos, notável. Não diz, “Nos nomes (plural) do Pai e do Filho e do Espírito Santo”; nem mesmo (o que poderia ser considerado como o equivalente a isso), “No nome do Pai, e no nome do Filho, e no nome do Espírito Santo”, como se tivéssemos que ter em consideração três Seres separados. Nem diz, por outro lado, “No nome do Pai, Filho e Espírito Santo”, como se “O Pai, o Filho e o Espírito Santo” pudessem ser tomados como simplesmente três designações de uma e a mesma Pessoa. Afirma, de forma solene, e impressiva, a unidade dos três, reunindo-os, todos três, dentro dos limites do Nome único; e põe, então, grande relevo na distinção de cada um, introduzindo-os, um de cada vez, com o artigo: “No nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”. Estes três, o Pai, e o Filho, e o Espírito Santo, estão, cada um deles, de forma evidente, em relação aos outros, como personalidades distintas: estes três, o Pai, o Filho, e o Espírito Santo, estão todos unidos, num sentido profundo, numa comparticipação comum do único Nome.
Devemos ter em atenção, para podermos compreender a implicação desta forma de declaração, o significado da expressão, “o Nome”, e as associações cheias de significado, com que foi entregue aos recipientes desta comissão. O judeu não pensava no nome como nós estamos acostumados a pensar, como um mero símbolo externo; considerava-o antes como a expressão adequada do mais íntimo do seu possuidor. No Seu nome, encontra expressão o Âmago do Ser de Deus; e o Nome de Deus — “este nome glorioso e terrível, Jeová, teu Deus” (Deut. 28:58) — era, portanto, algo de sumamente sagrado, sendo, na verdade, praticamente equivalente ao próprio Deus. Portanto, não é mero solecismo, quando lemos (Isaías 30:27): “Eis que o nome de Jeová vem”; e os paralelismos são muitíssimo instrutivos, ao lermos (Isaías 59:19): “Então temerão o Nome de Jeová desde o poente, e a Sua glória desde o nascente do Sol; vindo o inimigo como uma corrente de águas, o Espírito do Senhor arvorará contra ele a sua bandeira”. As implicações do Nome eram tão significativas, que era possível a expressão permanecer absolutamente, sem se lhe acrescentar o próprio nome, como representando, suficientemente, a majestade de Jeová: era uma coisa terrível “blasfemar o Nome” (Lev. 24:11).
Todos aqueles sobre os quais fora invocado o Nome de Jeová, eram d’Ele, possessão Sua, e tinham direito à Sua proteção. Portanto, é por amor do Seu Nome, que o aflito povo de Judá, clama à Esperança de Israel, seu Salvador em tempo de angústia: “Mas tu estás no meio de nós, ó Jeová, e nós somos chamados pelo teu nome; não nos desampares” (Jer. 14:9); e o Seu povo encontra a expressão apropriada para a sua mais profunda vergonha, no lamento: “Tornámo-nos como aqueles sobre quem tu nunca dominaste, e como os que nunca se chamaram pelo teu nome” (Isaías 63:19); em contrapartida, o cume da alegria é atingido, no clamor “Pelo teu nome me chamo, Jeová, Deus dos Exércitos” (Jer. 15:1.6; vd. II Cron. 7:14; Dan. :18,19). Portanto, quando nosso Senhor mandou aos seus discípulos batizar os que levassem a obedecer-Lhe, “no nome de...”, Ele usava uma linguagem impregnada de um elevado significado. Não O podiam entender de outra forma, senão como substituindo o nome de Jeová por esse outro Nome: “Do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”; e isto não poderia ter, de maneira alguma, para os discípulos, outro significado senão que Jeová, doravante, passaria a ser conhecido pelo novo Nome: do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. A única alternativa seria a de que, para a comunidade que estava fundando, Jesus estivesse a suplantar Jeová por um outro Deus; e esta alternativa é nada mais nada menos do que monstruosa. Não há, pois, alternativa, e só nos resta compreender que Jesus, aqui, dava à Sua comunidade um novo Nome para Jeová, e que esse novo Nome era o Nome tríplice de “O Pai, e o Filho, e o Espírito Santo”. Não há tão-pouco qualquer possibilidade de dúvida de que por “o Filho”, neste Nome tríplice, Ele falava de Si mesmo, com todas as implicações que isto encerra de uma personalidade distinta; e, evidentemente, que ainda abrange a personalidade, igualmente distinta, de “o Pai” e de “o Espírito Santo”, com os quais o Filho está aqui associado, e de quem, da mesma maneira, se distingue, aqui, “o Filho”. Esta é uma atribuição direta a Jeová, o Deus de Israel duma personalidade tríplice, e é, assim, uma enunciação direta da doutrina da Trindade. Não assistimos aqui ao nascimento da doutrina da Trindade; esta é pressuposta. O que estamos a testemunhar é o anúncio autoritativo da Trindade como o Deus do Cristianismo, pelo seu Fundador, numa das mais solenes das suas declarações registradas. Israel adorara o único Deus verdadeiro, sob o Nome de Jeová; os Cristãos devem adorar o mesmo Deus, único e verdadeiro, sob o Nome de “o Pai, e o Filho, e o Espírito Santo”. Esta é uma das características distintivas dos Cristãos; o que é o mesmo que dizer que a doutrina da Trindade é, de acordo com a compreensão de nosso Senhor a seu respeito, a marca distintiva da religião que Ele fundou.

14.                     A GENUINIDADE DA FÓRMULA BATISMAL

Uma passagem abrangendo tantas implicações não escapou, claro, a críticas e desafios. Fez-se uma tentativa, que não pode deixar de ser considerada como leviana, para a retirar do texto do Evangelho de Mateus. Todo o conjunto da evidência externa clama contra isto; e a evidência interna não é, em si, menos decisiva, para o mesmo efeito. Quando se apresentam o “universalismo”, o “eclesiasticismo” e a “alta teologia” da passagem, para atacar a sua genuinidade, esquece-se que não só se atribuem ao Jesus de Mateus parábolas como a do Fermento e a da Semente da Mostarda, mas declarações como as de 8:11,12; 21:43; 24:14; que é só neste Evangelho que se relata de Jesus falando, familiarmente, da Sua Igreja (16:8; 18:17); e que, depois da grande afirmação de 11:27 e seg., nada resta de valor sublime a Lhe ser atribuído. Quando se apresentam as mesmas objeções contra o reconhecimento da passagem como uma declaração autêntica do próprio Jesus, é bem evidente que não se pode ter em mente o Jesus dos evangelistas. A afirmação registrada aqui está absolutamente de acordo com o Jesus do Evangelho de Mateus, como acabamos de ver; e, sem dúvida, com o Jesus de todo o Novo Testamento.
Não é justo que se construa, em primeiro lugar, a priori, um Jesus ao nosso gosto, para rejeitar em seguida, como “não histórico” tudo quanto, no texto transmitido do Novo Testamento, não seria natural a tal Jesus. Não são essas passagens rejeitadas que não são históricas, mas, sim, o nosso Jesus a priori. Além disso, neste exemplo, a historicidade das palavras refutadas é protegida por uma relação histórica muito importante, na qual está enquadrada. Não é apenas Jesus que fala com uma consciência Trinitariana, mas também, todos os autores do Novo Testamento. A posse universal, pelos Seus seguidores, duma compreensão tão arraigada de tal doutrina, requer a pressuposição de que algum ensinamento, semelhante ao que Lhe é atribuído aqui, fizesse parte, na realidade, das instruções de Jesus aos seus discípulos. Mesmo que os documentos não Lho atribuíssem, tão abertamente, teríamos que supor que Ele fizesse alguma afirmação como esta. Nestas circunstâncias, não pode haver razões válidas para duvidar que Ele o tivesse dito, quando o documento Lho atribui explicitamente.

15.                     O TRINITARIANISMO SEGUNDO PAULO

Quando nos voltamos, dos discursos de Jesus, para aquilo que os Seus discípulos escreveram, para observar como a aceitação tácita da doutrina da Trindade é básica na construção de tudo quanto escreveram, vamos, naturalmente, primeiro, para as cartas de Paulo. A sua quantidade já é impressionante; e a precisão com que a sua composição se pode fixar, menos de uma geração após a morte de Jesus, aumenta-lhes a sua importância como testemunhos históricos. Sem dúvida que nada deixam a desejar, quanto à riqueza do seu testemunho em relação à concepção Trinitarianas de Deus, sobre a qual se baseiam. Através de toda a série, desde a 1ª aos Tessalonicenses, cerca de 52 d.C., ate a 2ª a Timóteo, escrita cerca de 68 d.C., a redenção, que é o assunto único que elas têm que proclamar e recomendar, e todas as bênçãos nela incluídas ou que a acompanham, são atribuídas persistentemente, a uma tríplice causa Divina. Por toda a parte, em todas as suas páginas, Deus o Pai, o Senhor Jesus Cristo, e o Espírito Santo, surgem como o objeto comum de toda e qualquer adoração religiosa, e a fonte conjunta de todas as operações Divinas. Na liberdade das referências que lhe são feitas, por vezes, só um deles é destacado, proeminentemente; mas, mais frequentemente, duas delas são reunidas, em ação de graças ou em oração; e, frequentemente, todas as três são apresentadas unidas, tentando o Apóstolo dar uma expressão adequada à sua gratidão para com a fonte Divina de todo o bem, pelas bênçãos recebidas, ou ao seu anseio, a seu próprio respeito ou ao dos seus leitores, por uma maior comunhão com o Deus de graça.
Com regularidade, ele começa as suas Epístolas com uma oração pela “graça e paz” para os seus leitores, de “Deus, nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo”, como a fonte conjunta dessas bênçãos divinas, eminentemente (Rom. 1:7; I Cor. 1:3; II Cor 1:2; Gal. 1:3; Ef. 1:2; Fil.1:2; II Tes. 1:2; I Tim. 1:2; II Tim. 1:2; File. v. 3; vd. I Tes. 1:1). Não é, evidentemente, uma exceção a este hábito, na essência da questão, mas uma plenitude relativa de expressão, quando, nas palavras de introdução da Epístola aos Colossenses, se omite a frase “e da do Senhor Jesus Cristo” e lemos apenas: “Graças a vós, e paz da parte de Deus nosso Pai”. Do mesmo modo, não seria exceção alguma, na essência da questão, mas apenas na plenitude relativa de expressão, se, em qualquer altura, fosse acrescentado, por acaso, aos outros dois, o nome do Espírito Santo, como só acontece em II Cor. 13:14, em que lhes é acrescentado na oração final com que Paulo termina as suas cartas, e que, em geral, toma a forma simples, de “a graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja convosco” (Rom. 16:20; I Cor. 16:23; Gal. 6:18; Fil. 4:23; I Tes. 5:28; 11 Tes. 3:18; File. v. 25; em forma mais ampla: Ef. 6:23;24; mais resumida: Col. 6:18; I Tim. 6:21; II Tim. 4:22; Tito 3:15). Entre estas passagens, de introdução e de conclusão, há constantes alusões, entrelaçadas de forma muito complicada, a Deus o Pai, ao Senhor Jesus Cristo, e ao Espírito Santo.
O “monoteísmo” de Paulo é fortíssimo: a primeira premissa de todo o seu pensamento, acerca das coisas divinas, é a unidade de Deus (Rom. 3:30; 1 Cor. 8:4; Gal. 3:20; Ef. 4:6; I Tim. 2:5; vd. Rom. 16:22; I Tim. 1:17). No entanto, para ele, Deus o Pai não é mais Deus do que o Senhor Jesus Cristo ou o Espírito Santo o são. Para ele, o Espírito Santo está relacionado com Deus, como o espírito do homem o está com o homem (I Cor. 2:11) e, portanto, se o Espírito de Deus habita em nós, é Deus que habita em nós (Rom. 8:10 e seg.), e, por tal fato, somos constituídos templos de Deus (I Cor. 3:16). Não há expressão forte demais que ele possa usar, para afirmar a Divindade de Cristo: Ele é “o nosso grande Deus” (Tito 2:13); Ele é “sobre todos, Deus bendito eternamente” (Rom. 9:5); e é, na verdade, declarado expressamente, acerca d’Ele, que a “plenitude da Divindade”, isto é, tudo quanto entra na Deidade, e a constitui Deidade, habita n’Ele.
É precisamente ao declarar o seu monoteísmo que Paulo coloca o nosso Senhor nesta Divindade única. “Não há senão um só Deus”, afirma abertamente, e, em seguida, ilustra e prova esta afirmação, dizendo que os pagãos podem ter “muitos deuses e muitos senhores; todavia, para nós, há um só Deus, o Pai, de quem é tudo, e para quem nós vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós por Ele” (I Cor. 8:6). Evidentemente, este “um só Deus, o Pai” e “um só Senhor, Jesus Cristo” são abrangidos em conjunto ao dizer que “não há outro Deus, senão um só” (v. 4). O conceito paulino de um só Deus, a quem só adora, inclui, por outras palavras, reconhecimento de que, dentro da Unidade do Seu Ser, há uma tal distinção de Pessoas, como nos é dada em “um só Deus, o Pai” e em “um só Senhor, Jesus Cristo”.


16.                     A CONJUNÇÃO DAS TRÊS PESSOAS, NOS ESCRITOS DE PAULO

Em numerosas passagens, espalhadas através das Epístolas de Paulo, das primeiras (I Tes. 1:2-5; II Tes. 2:13,14) as últimas (Tito 3:4-6; II Tim. 1:3, 13, 14), todas as três Pessoas, Deus o Pai, o Senhor Jesus Cristo e o Espírito Santo, são postas lado a lado da maneira mais incidental, como fontes comuns de todas as bênçãos salvadoras que os crentes em Cristo recebem. Uma série típica de passagens como estas encontra-se em Efésios 2:18; 3:2-5,14,17; 4:4-6; vv. 18-20.
Porém, os exemplos mais interessantes, talvez sejam aqueles que nos são oferecidos nas Epístolas aos Coríntios. Em I Coríntios 12:4-6, Paulo apresenta os riquíssimos dons espirituais, com que a Igreja era abençoada, com um aspecto triplo, e liga estes aspectos com as três Pessoas Divinas. “Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos”. Pode-se pensar que há algo do que se pode quase chamar artificialidade, ao atribuir os dons da Igreja como sendo graças, ao Espírito; como serviços, a Cristo; e como operações, a Deus. Mas, desta maneira, ainda mais nitidamente é revelada a concepção Trinitariana básica que domina a estrutura das orações: Paulo escreve assim, evidentemente, não porque “dons”, “ministérios”, “operações” se destaquem no seu pensamento como coisas muito diferentes, mas, sim, porque Deus, o Senhor, e o Espírito, estão presentes, constantemente, na sua mente, sugerindo uma tripla causalidade, por detrás de todas as manifestações da graça. Faz alusão à Trindade, em vez de afirmar a sua existência; mas faz-lhe alusão de tal maneira que mostra que ela constitui o fator determinante de todo o conceito de Paulo, a respeito do Deus da redenção.
II Coríntios 13:13, é ainda mais elucidativo, tendo passado para o uso litúrgico, geral, nas Igrejas, como bênção: “A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo, seja com vós todos!”. As três bênçãos redentoras, mais elevadas, são reunidas, e ligadas, distributivamente, às três Pessoas do Deus Triuno. Não há, de novo, qualquer ensino formal da doutrina da Trindade, mas apenas, um outro exemplo do falar naturalmente, baseado numa consciência Trinitariana. Paulo está, simplesmente, a pensar da origem divina destas grandes bênçãos; no entanto, ele pensa, habitualmente, desta origem Divina de bênçãos da redenção, de forma trina. Não diz, pois, como poderia, e muito bem, ter feito: “A graça e o amor e a comunhão de Deus seja com todos vós”, mas, “A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo, seja com vós todos”. Testifica, assim, quase inconscientemente, mas duma maneira muito rica, dessa trina composição da Divindade, tal como a concebe.

17.                     O TRINITARIANISMO DOS OUTROS ESCRITORES DO NOVO TESTAMENTO

Os fenômenos das Epístolas de Paulo repetem-se nos outros escritos do Novo Testamento. Nestes, também, se pressupõe, por toda a parte, que as atividades redentoras de Deus, baseiam-se numa tripla origem: em Deus o Pai, no Senhor Jesus Cristo, e no Espírito Santo; e estas três Pessoas surgem, repetidamente, juntas, nas expressões da esperança cristã ou nas aspirações da devoção cristã (por exemplo, Heb. 2:3,4; 6:4-6; 10:29-31; I Ped. 1:2; 2:3-12; 4:13-19; I João 5:4-8; Judas vv. 20, 21; Apoc. 1:4-6).
Exemplos tão típicos, talvez, como quaisquer outros, são fornecidos pelos dois seguintes: “Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo” (I Ped. 1:2); “Orando no Espírito Santo, conservai-vos a vós mesmos no amor de Deus, esperando a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo para a vida eterna” (Judas vv. 20,21).
Podemos acrescentar-lhes, o exemplo, sumamente simbólico, do Apocalipse: “Graça e paz seja convosco, da parte daquele que é, e que era, e que há-de vir; e da dos sete espíritos que estão diante do Seu Trono; e da parte de Jesus Cristo, que é a fiel testemunha, o primogênito dos mortos, e o príncipe dos reis da terra!” (Apoc. 1:4,5). Também estes escritores escreveram, claramente, a partir de uma consciência Trinitariana fixa, e dão testemunho da compreensão universal, corrente nos círculos apostólicos.
Compreendia-se perfeitamente, por toda a parte e por todos, que o Deus único a quem os Cristãos adoravam; e de quem apenas esperavam redenção, e tudo quanto a redenção significava; incluía dentro da Sua unidade, não diminuída, os três: Deus o Pai, o Senhor Jesus Cristo, e o Espírito Santo, cujas atividades, em relação uns aos outros, são consideradas como distintamente pessoais. É este o testemunho, uniforme e penetrante, do Novo Testamento, e é tanto mais impressivo por ser dado com uma naturalidade não estudada e muita singeleza, sem qualquer esforço para distinguir entre o que passou a ser chamado os aspectos ontológico e econômico das distinções Trinitarianas, e, até, sem consciência aparente acerca da existência de semelhante distinção de aspectos. Quer se pense em Deus em Si mesmo, ou nas Suas operações, o conceito básico, surge, sem esforço, em formas trinas.

18.                     VARIAÇÕES NA TERMINOLOGIA DOS ESCRITORES

Nisto devemos ter deixado de observar que a terminologia Trinitariana de Paulo e dos outros escritores do Novo Testamento não é precisamente idêntica como a do nosso Senhor, como nos é relatada nos Seus discursos. Paulo, por exemplo — e o mesmo se pode dizer dos outros escritores do Novo Testamento (com exceção de João) — não fala, como se relata tê-lo, o nosso Senhor, feito, do Pai, do Filho, e do Espírito Santo, tanto como de Deus, do Senhor Jesus Cristo, e do Espírito Santo. Esta diferença de terminologia, explica-se, em grande medida, nas diferentes relações em que aqueles que falam se encontram perante a Trindade. O nosso Senhor não podia falar, com naturalidade, de Si mesmo, como uma das Pessoas da Trindade, pela designação de “O Senhor”, enquanto que a designação de “O Filho”, que exprime a Sua consciência do uma íntima relação, e, até, de uma semelhança exata, com Deus, vem naturalmente aos seus lábios. Porém, Ele era o Senhor de Paulo; e Paulo, muito naturalmente, pensava e falava dele, como tal. Na verdade, “Senhor”, é uma das designações favoritas de Paulo para Cristo, e tornou-se, praticamente, para ele, na verdade, um nome próprio para Cristo, e, de fato, o seu Nome Divino para Cristo. É, portanto, naturalmente, o seu nome Trinitariano, para Cristo. Isto porque, quando pensa em Cristo como Divino, chama-Lhe “Senhor”, e, naturalmente, quando pensa das três Pessoas, juntas, como Deus triuno, coloca-O, como “Senhor”, ao lado de Deus — nome que Paulo constantemente usa para “o Pai” — e do Espírito Santo.
Surge, sem dúvida, a pergunta se teria sido possível a Paulo fazer isto, em especial com a coerência com que o faz, se, no seu conceito dele, a essência verdadeira da Trindade fosse contida nas expressões “Pai” e “Filho”. Paulo pensa na Trindade, sem dúvida, mais do ponto de vista dum adorador do que dum sistematizador. Por isso, designa as Pessoas da Trindade, não tanto das relações umas com as outras, como das suas (de Paulo) relações para com Elas. Vê, na Trindade, o seu Deus, o seu Senhor, e o Espírito Santo que nele habita; e, naturalmente, fala assim correntemente, das três Pessoas. É notável, mesmo assim, se pensasse da própria essência da Trindade, como residindo nos termos “Pai” e “Filho”, que, nas suas numerosas alusões à Trindade dentro da Divindade, nunca traísse qualquer sentido disso. Podemos, igualmente, notar que, nas suas alusões à Trindade, não foi conservada, nem em Paulo nem nos outros escritores do Novo Testamento, a ordem dos nomes, tal como se encontra na grande comissão de nosso Senhor (Mateus 28:19).
Aparece, mesmo, em alguns casos, a ordem inversa, como, por exemplo, em I Coríntios 12:4-6 (vd. Ef. 4:4-6); e isto pode-se compreender como um arranjo para ir do último ao primeiro e, neste sentido, como um testemunho da disposição em Mateus 28:19. Essa disposição, porém, é muito variável; e na enumeração mais formal das três Pessoas, a de II Coríntios 13:13 está na seguinte ordem: Senhor, Deus, Espírito Santo. Isto sugere a pergunta, naturalmente , se a ordem Pai, Filho, Espírito Santo tinha qualquer significado especial para Paulo e para os outros escritores do Novo Testamento. Se, na sua convicção, a própria essência da doutrina da Trindade estava incorporada nesta ordem, não deveríamos esperar que aparecessem nas numerosas alusões à Trindade, alguns vestígios desta convicção?

19.                     O QUE OS TERMOS “FILHO” E “ESPÍRITO SANTO” ENVOLVEM

Fatos como estes têm uma certa influência sobre o testemunho do Novo Testamento acerca das inter-relações das Pessoas da Trindade. Quanto ao fato da Trindade (isto é, quanto ao fato de, na unidade da Divindade, subsistirem três Pessoas, cada uma das quais tendo a sua ação particular na operação da salvação), o testemunho do Novo Testamento é claro, coerente, penetrante e concludente. Neste está incluído o testemunho constante e decisivo da Deidade, completa e não diminuída, de cada uma das Pessoas; não há linguagem excessiva que se possa aplicar a cada uma delas, por sua vez, no esforço para dar expressão à compreensão que o autor tem da Sua Divindade: o nome que a cada uma delas é dado, é bem compreendido como sendo “o nome que é acima de todo o nome”.
Quando tentamos, no entanto, prosseguir a investigação por detrás do fato amplo com o objetivo de descobrir, com exatidão, de que maneira os escritores do Novo Testamento concebiam as três Pessoas estarem relacionadas umas com as outras, encontramos grandes dificuldades. Nada podia parecer ser mais natural, por exemplo, do que supor que as relações mútuas das Pessoas da Trindade se revelem nas designações “o Pai, o Filho e o Espírito Santo”, que lhe são dadas pelo nosso Senhor na fórmula solene de Mateus 28:19. A confiança que temos nesta suposição, é, porém, abalada, de certa maneira, quando verificamos, como acabamos de fazer, que estas designações não são cuidadosamente conservadas nas suas alusões feitas à Trindade pelos autores do Novo Testamento, em geral, mas são simplesmente características das alusões do nosso Senhor e das de João, cujas formas de expressão se assemelham, muitíssimo, às do nosso Senhor. A nossa confiança e ainda mais abalada quando observamos que as implicações a respeito das relações mútuas das Pessoas da Trindade, derivadas em geral dessas designações, não se encontram absolutamente nelas, como se supõe, em geral.
Pode parecer muito natural ver, na designação “Filho”, urna indicação da subordinação e derivação do Ser, e pode ser relativamente fácil atribuir uma semelhante significação incluída na expressão “Espírito Santo”. Porém, é certo que não era esse o significado de qualquer dos termos na consciência semítica, em que se baseia a fraseologia das Escrituras; e poderia mesmo parecer duvidoso que isso estivesse mesmo incluído nas suas sugestões mais remotas. O que está por detrás do conceito de “filiação” na linguagem bíblica, é, simplesmente, “semelhança”; o que o pai é, é-o também o filho. O uso enfático da expressão “Filho” a uma das Pessoas da Trindade, portanto, afirma, antes, a Sua igualdade com o Pai, e não a Sua subordinação ao Pai; e, se houver nela qualquer implicação de derivação, parece ser muito distante. A adição do adjetivo “unigênito” (João 1:14; 3:16-18; I João 4:9), não acrescenta, necessariamente, outra ideia senão a de singularidade, ser único e não de derivação (Sal. 22:20; 25:16; 35:17); e mesmo uma frase como “o Filho unigênito” (João 1:18) não possui, necessariamente, a ideia de derivação, mas apenas a de uma consubstancialidade absolutamente única; e até uma frase como “o primogênito de toda a criação” (Col. 1:15) pode não trazer consigo a ideia principiar a existir, mas apenas afirma a prioridade de existência.
Da mesma forma, a designação “Espírito de Deus” ou “Espírito de Jeová”, que encontramos frequentemente no Velho Testamento, não traz consigo, de forma alguma, nem a ideia de derivação nem a de subordinação, mas é, apenas, o nome executivo de Deus — a designação de Deus, do ponto de vista da Sua atividade, e, portanto, sugere identidade com Deus; e não há razão para supor que ao passar do Velho para o Novo Testamento, a expressão tivesse adquirido um significado essencialmente diferente. Embora pareça extraordinário, acontece, além disso, que temos, no próprio Novo Testamento, algo que importa quase uma definição formal dos dois termos, “Filho” e “Espírito Santo”, e em ambos os casos se acentua a noção de igualdade ou identidade. Em João 5:18, lemos: “Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-Lo, porque não só quebrantava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus”. A questão está, claro, no adjetivo “próprio”. Jesus era bem compreendido em chamar Deus “Seu próprio Pai”, e isto é, em usar as expressões “Pai” e “Filho”, não apenas num sentido meramente figurativo, tal como quando Israel foi chamado filho de Deus, mas no sentido verdadeiro da palavra. E isto era compreendido como a pretensão de ser tudo quanto Deus é. Ser Filho de Deus, em qualquer sentido, era ser semelhante a Deus nesse sentido; ser o próprio Filho Deus, era ser exatamente como Deus, ser “igual a Deus”.
Lemos, da mesma maneira, em I Coríntios 2:10,11: “Porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus. Porque, qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito do homem, que nele está? Assim, também, ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus”. Espírito, aqui, aparece como o substrato da autoconsciência divina, o princípio do conhecimento de Deus acerca de Si mesmo. Em resumo, Ele é, simplesmente, o próprio Deus, na essência do mais recôndito do Seu Ser. Tal como o espírito do homem é o centro da vida humana, assim também o Espírito de Deus é o Seu próprio elemento vital. Como se pode, pois, pensar que está subordinado a Deus, ou que recebe o Seu Ser de Deus? Porém, se a subordinação do Filho e do Espírito ao Pai; em modos de subsistência; e a sua derivação do Pai, não são necessariamente envolvidas na sua designação de Filho e de Espírito, será difícil descobrir no Novo Testamento provas obrigatórias da Sua subordinação ou da Sua derivação.

20.                     A QUESTÃO DE SUBORDINAÇÃO

Claro, não há duvida que nas “formas de operação”, como é tecnicamente conhecido — isto é, nas funções atribuídas às varias pessoas da Trindade, no processo de redenção, e, mais amplamente, em toda a matéria das relações de Deus com o mundo — se exprime, de forma evidente, o princípio da subordinação. O Pai é primeiro, o Filho segundo, e o Espírito Santo terceiro, nas operações de Deus, tal como nos estão reveladas, em geral, e muito especialmente nas operações pelas quais se cumpre a redenção. O que o Pai faz, o faz mediante o Filho (Rom. 2:16; 3:22; 5:1,11,17,21; Ef. 1:5; I Tes. 5:9; Tito 3:5), por meio do Espírito. O Filho é enviado pelo Pai e faz a vontade de Seu Pai (João 6:38); o Espírito é enviado pelo Filho e não fala de Si mesmo, mas apenas leva o que é de Cristo e o mostra ao Seu povo (João 17.7 seg.); e temos a afirmação do próprio Senhor Jesus, de que o enviado não é maior do que aquele que o enviou (João 13:16). Nosso Senhor até declara, com clara decisão, que “o Pai é maior do que eu” (João 14:28); e Paulo diz-nos que Cristo é de Deus, assim como nós somos de Cristo (I Cor. 3:23), e que, assim como Cristo é “a cabeça de todo o varão”, também “Deus é a cabeça de Cristo” (I Cor. 11:3).
Não é, porém, tão evidente que o princípio de subordinação governe também os “modos de subsistência”, como é tecnicamente designado; isto é, na relação obrigatória das Pessoas da Trindade entre Si. A própria riqueza e variedade de expressão da sua subordinação, uns para com os outros, nas formas de operação, cria uma dificuldade em atingir a certeza de que são representados, também, como estando subordinados entre Si, nos modos de subsistência. Em cada caso da aparente sugestão de subordinação, em modos de subsistência, surge a pergunta se, ou não, este pode explicar-se, afinal de contas, como sendo apenas mais uma expressão de subordinação, em modos de operação. Pode ser natural supor que uma subordinação em modos de operação se baseie numa subordinação em modos de subsistência; que a razão por que é o Pai que envia o Filho, e o Filho que envia o Espírito, é que o Filho está subordinado ao Pai, e o Espírito ao Filho.
Devemos, porém, ter em mente que estas relações de subordinarão em modos de operação, podem muito bem ser a consequência de uma convenção, um acordo, entre as Pessoas da Trindade — um “Pacto” como é tecnicamente designado — em virtude do qual uma determinada função na obra da redenção é voluntariamente aceite por cada uma delas. Portanto, é muitíssimo desejável, pelo menos, que provas definitivas da subordinação em modos de subsistência, sejam descobertas antes que esta seja aceite como fato provado. No caso da relação do Filho para com o Pai, há ainda a dificuldade da encarnação, em que o Filho, em virtude de ter assumido a natureza de uma criatura, em união Consigo próprio, entra em novas relações com o Pai, caracterizadas por um aspecto deliberadamente subordinado.
Tem-se formulado a pergunta se as próprias designações de Pai e de Filho não seriam a expressão destas novas relações, e, portanto, sem qualquer significado com respeito as relações eternas das Pessoas assim designadas. Esta pergunta deve ser, sem dúvida, respondida negativamente. Embora, naturalmente, em muitas das ocasiões em que surgem as expressões “Pai” e “Filho”, seria possível considerá-las, simplesmente, como relações meramente econômicas, sempre subsistem algumas que resistem a tal tratamento, e podemos ter a certeza de que se aplica “Pai” e “Filho” às Suas relações eternas e necessárias. Mas, como vimos, estas expressões não parecem importar relações de primeiro e segundo, superioridade e subordinação, em modos de subsistência; e o fato da humilhação do Filho de Deus, para a Sua obra terrena, introduz um fator, na interpretação das passagens que sugerem a Sua subordinação ao Pai, que lança dúvidas sobre a inferência que delas se tira, de uma relação eterna de subordinação, na própria Trindade. Deve-se, pelo menos, dizer que, na presença das grandes doutrinas do Novo Testamento, do Pacto da Redenção, por um lado; e da Humilhação do Filho de Deus em virtude da Sua obra, e das duas Naturezas na constituição da Sua Pessoa, como encarnado, por outro lado; torna-se extremamente difícil a interpretação das passagens que indicam subordinação nas relações eternas entre o Pai e o Filho. A pergunta apresenta-se, constantemente, senão encontram, antes, a sua inteira explicação nos fatos incorporados nas doutrinas do Pacto, da Humilhação do Cristo, e das Duas Naturezas da Sua Pessoa Encarnada. Seria, certamente, em tais circunstâncias, absolutamente ilegítimo forçar tais passagens, para as obrigar a sugerir a existência de qualquer subordinação para o Filho ou para o Espírito que comprometeria, do qualquer maneira, essa completa identidade com o Pai, no Ser, e essa completa igualdade com o Pai, em poderes que são, constantemente, pressupostos e, com frequência, afirmados para eles, de maneira enfática, ainda que apenas incidentalmente, em todo o Novo Testamento.

21.                     O TESTEMUNHO DA CONSCIÊNCIA CRISTÃ

A Trindade das Pessoas da Divindade, representadas na encarnação e na obra redentora de Deus o Filho, e a obra salvadora de Deus o Espírito Santo, é, assim, pressuposta em toda a parte no Novo Testamento, e surge, em suas páginas, numa expressão fragmentária, repetida, e, ao mesmo tempo, enfática e iluminadora. Como as raízes estão na tripla casualidade Divina do processo salvador, encontra, também naturalmente, um eco na consciência de todos quantos experimentaram esta salvação. Todas as almas remidas, sabendo-se reconciliadas com Deus, por intermédio do Seu Filho, e vivificadas, em novidade de vida, pelo Seu Espírito, voltam-se, da mesma maneira, para o Pai, para o Filho e para o Espírito Santo, com a exclamação de reverente gratidão nos seus lábios. “Senhor meu e Deus meu!”. Se não fosse possível construir a doutrina da Trindade da sua consciência de salvação, no entanto, os elementos da sua consciência da salvação são-lhes interpretados, e reduzidos a uma ordem, somente pela doutrina da Trindade que encontram como base, e dando o seu significado e coerência ao ensino das Escrituras, quanto ao processo da salvação. Por meio desta doutrina, os salvos podem pensar, clara e consequentemente, desta tripla relação para com o Deus Salvador, que conhecem, experimentalmente, como amor Paterno, enviando um Redentor; como amor redentor, executando a redenção; como amor salvador, aplicando a redenção: todas as manifestações em métodos distintos, e por agentes distintos, do amor único de Deus, que busca e salva o pecador. Sem a doutrina da Trindade, a sua vida cônscia cristã seria lançada em confusão e deixada desorganizada, se não tomasse, na verdade, um aspecto irreal; com a doutrina da Trindade, a ordem, o significado e a realidade aparecem em cada elemento dela. Da mesma maneira, a doutrina da Trindade e a doutrina da redenção, historicamente, ou se mantém de pé, ou caem juntas.
Uma teologia unitariana está, em geral, associada com uma antropologia pelagiana e uma soteriologia sociniana. Eis um testemunho extraordinário que lhe é prestado por F. E. Koenig (“Offenbarungsbegriff des A. T.”, 1882, I, 125): “Verifiquei que muitos há que lançam fora toda a história da redenção, pela simples razão que não conseguiram um conceito do Deus Trino”. É nesta intimidade da relação entre as doutrinas da Trindade e da redenção, que reside a razão final por que a Igreja cristã não pôde descansar até que conseguiu uma doutrina, definida e bem estruturada, da Trindade. Nada mais poderia ser aceite como fundamento adequado para a experiência da salvação cristã. Nem a estrutura sabeliana, nem a ariana, poderiam ir ao encontro de, nem satisfazer, os dados da consciência da salvação, como não podiam ir ao encontro de, nem satisfazer, os dados da revelação bíblica. Sem dúvida que os dados da revelação bíblica poderiam ter sido deixados por satisfazer: o homem poderia ter encontrado um modus vivendi com ensinamentos bíblicos incompletos, negligenciados ou mesmo pervertidos. Mas acontece que elementos, pervertidos ou negligenciados, da experiência cristã, são mais insistentes em exigir atenção e correção.
A consciência cristã insatisfeita, examinava, sem dúvida, as Escrituras, na emergência de cada nova tentativa de expor a doutrina da natureza a das relações de Deus, para verificar se estas coisas seriam verdadeiras, e nunca encontrava satisfação, até que os dados das Escrituras receberam a sua formulação coerente, numa doutrina válida da Trindade. Também aqui, o coração do homem estava inquieto, até que encontrou repouso no Deus Triuno, o autor, o procurador e o aplicador da salvação.

22.                     A FORMULAÇÃO DA DOUTRINA

O impulso determinante para a formulação da doutrina da Trindade, na Igreja, foi a convicção profunda que ela tinha da absoluta deidade de Cristo, na qual revolve, como num eixo, todo o conceito cristão de Deus, desde os primeiros dias do cristianismo. O princípio que dava direção na formulação da doutrina foi fornecido pela Fórmula Batismal, anunciada por Jesus (Mat. 8:19), da qual derivou o plano principal das confissões batismais e das “regras de fé” que, em breve, começaram a ser enunciadas em toda a Igreja. Foi por meio destes dois princípios fundamentais — a verdadeira divindade de Cristo e a fórmula batismal — que se provaram todas as tentativas para formular a doutrina cristã acerca de Deus, e foi por intermédio do seu poder modelador que a Igreja se encontrou, afinal, na posse de uma forma de declaração que prestava inteira justiça aos dados da revelação redentora, refletidos no Novo Testamento, e nas exigências do coração dos cristãos, sob a experiência da salvação.
Dada a natureza do assunto, a doutrina formulada foi um processo lento. A influência de conceitos herdados e de filosofias correntes, mostrou-se, inevitavelmente, no esforço para construir, para o intelecto, a fé imanente dos Cristãos. No Século II as ideias neo-estéticas e neoplatônicas, predominantes, desviaram o pensamento cristão para vias de subordinacionismo, e produziram o que se chama a logoscristologia que considera o Filho como uma extensão da Divindade, reduzida às dimensões concomitantes com as Suas relações com um mundo de tempo e do espaço; entretanto, em grande escala, não se ligava qualquer importância ao Espírito Santo. Uma reação que, denominada Monarquianismo, identificava, tão completamente, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que eram considerados apenas como aspectos diferentes, ou momentos diferentes, na vida da Pessoa Divina única, chamada às vezes Pai, outras Filho e outras Espírito Santo, à medida que as Suas várias atividades fossem vistas, sucessivamente, quase conseguiu estabelecer-se, durante o Século III, como a doutrina da Igreja em geral. No conflito entre estas duas tendências opostas, a Igreja seguiu, gradualmente, o seu caminho, sob a direção da fórmula batismal, transformada numa “Regra de Fé”, para uma melhor e bem equilibrada concepção, ate que, finalmente, surgiu a expressão de uma verdadeira doutrina da Trindade, em especial no Ocidente, por meio da brilhante dialética de Tertuliano. Estava, assim, à mão quando, no começo do Século IV, a logoscristologia, em oposição às tendências sabelianas dominantes, degenerou no que é conhecido como arianismo, segundo o qual o Filho era uma criatura ainda que exaltada acima de todas as outras criaturas, como Criador e Senhor; e a Igreja estava, portanto, preparada para afirmar a Sua Fé fixa num Deus Triuno, um em ser, mas em cuja unidade existiam três Pessoas consubstanciais. Esta doutrina foi declarada, debaixo da chefia de Atanásio, a fé da Igreja, no Concílio de Nicéia, no ano 325, e com os seus imensos esforços e dos “três grandes capadocianos”, os dois Gregórios e Basílio, ganhou aceitação, gradualmente, por toda a Igreja.
Foi, porém, às mãos de Agostinho, um século mais tarde, que a doutrina que se tornou doutrina da Igreja, tanto de fato como em teoria, recebeu a sua elaboração mais completa, e uma declaração mais cuidadosamente fundamentada.  Na forma que ele lhe deu, e que se encontra incorporada nesse “hino de batalha da Igreja Primitiva”, o chamado “Credo de Atanásio”, ela conservou o seu lugar como expressão adequada da fé da Igreja acerca da natureza do seu Deus, até ao dia de hoje. A linguagem em que está apresentada, mesmo nesta declaração final, retém, ainda, elementos lingüísticos que devem a sua origem aos modos de pensamento, característicos da logoscristologia do Século II, fixados na nomenclatura da Igreja, pelo Credo de Nicéia, do ano 325, ainda que, ali, estejam cuidadosamente protegidos contra o subordinacionismo inerente a logoscristologia, tendo-se tornado mais o veículo das doutrinas nicéias da geração eterna do Filho e da procissão eterna do Espírito Santo, com a consequente subordinação do Filho e do Espírito Santo ao Pai, nos modos de subsistência e de operação.
No Credo de Atanásio, porém, o princípio da igualdade das três Pessoas, que era já o motivo dominante do Credo de Nicéia — a homooúsia — é destacado de tal forma que, praticamente, põe fora da nossa atenção, senão fora de existência, estas sugestões restantes, de derivação e subordinação. No entanto, julgou-se necessário reafirmar, de vez em quando, vigorosamente, o princípio da igualdade, em oposição à tendência para salientar, indevidamente, os elementos de subordinacionismo, que, assim, ainda mantém um lugar na linguagem tradicional, com a qual a Igreja expressa a sua doutrina da Trindade. Coube, em especial, a Calvino, no interesse da verdadeira deidade de Cristo — o motivo constante de todo o corpo de pensamento trinitariano — reafirmar e confirmar o atributo de auto-existência (antotheotós) para o Filho. Deste modo, Calvino toma o seu lugar, com Tertuliano, Atanásio e Agostinho, como um dos principais contribuintes para a declaração exata e vital da doutrina Cristã do Deus Triuno.
















Disponível em: http://monergismo.com/wp-content/uploads/Doutrina_Trindade_Warfield.pdf

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