ELEAZAR DOMINI SILVA
E
ISAEL SOUZA COSTA
* Este artigo foi apresentado como cumprimento parcial da matéria de Exegese do Antigo Testamento em 2013, sendo esta matéria parte da grade curricular do Mestrado em Interpretação e Ensino da Bíblia. Portando, as sinceras desculpas pela linguagem estritamente acadêmica e os vocábulos hebraicos nos caracteres desta língua. Tentei, de alguma forma, transliterar alguns termos (para se ter uma noção de como seria a pronúncia) e juntamente com a transliteração a respectiva tradução. Uma vez feito isto em alguns momentos, quando a mesma expressão for repetida mais adiante (com caracteres hebraicos) não será mais colocada em todas elas a tradução e transliteração, pois esta já foi repetida algumas vezes acima. No mais, espero que entendam e gostem do artigo.
1.
INTRODUÇÃO
O
vocábulo רוּחַ (ruah - Espírito) é
um termo de acentuada expressão no material bíblico veterotestamentário e de
raio semântico diversificado, contudo seu sentido mais comum é apresentado
basicamente como “vento”, “sopro” e “espírito” (TENGSTRÖM, 2004). Sua
ocorrência é de trezentos e oitenta e nove vezes nas Escrituras Hebraicas (EVEN-SHOSHAN, 1983), sendo que dessas, onze se acham na porção aramaica do
livro de Daniel. Relacionando-se à divindade, o termo רוּחַ (ruah) acontece em média cento e sete vezes no AT (WOOD, 1976); anexado ao vocábulo אֱלֹהִים (Elohim - Deus) a ocorrência é de quinze vezes nos escritos hebraicos e outras
cinco na porção aramaica de Daniel. Semelhantemente, a expressão ocorre
vinculada a יְהוָה (YHWH - Adonai ou Jeová) umas vinte e sete vezes. Acrescendo-se, o termo רוּחַ (ruah) acontece reiteradas vezes em conotações antropológicas,
vinculado à disposição e variados estados emotivos da natureza humana (HILDEBRANDT, 1995). Considerando-se esta grande incidência no material
bíblico a presente abordagem preferenciará aquelas em que, de fato, o termo
aparece grafado em nexo com אֱלֹהִים, i.e., רוּחַ־אֱלֹהִים (Ruah Elohim - Espírito de Deus) perspectivando, portanto, extrair desde o texto o que acerca
desta expressão se acha disposto. Contudo, em momentos em que contextualmente a
expressão incidir de modo paralelo a outras equivalentes, alguns aportes neste
segmento também serão considerados.
O
estudo estará reunindo passagens em que acontece a expressão hebraica רוּחַ־אֱלֹהִים (Ruah Elohim - Espírito de Deus)e
seus contextuais equivalentes, dispondo-os, neste seguimento, em ordem temática,
objetivando sublinhar as informações que fornecem um possível desenvolvimento
do tema no cânon do Antigo Testamento. Nesta perspectiva temática, serão
notados o relacionamento do termo רוּחַ־אֱלֹהִים (Ruah Elohim - Espírito de Deus) como presente e ativo no tema da criação bem como no
ministério profético; seguindo-se, será reiterada sua participação na
habilitação administrativa e artísticas arquitetônico-artesanal e, ainda, a
análise buscará ser atentiva quanto ao termo no que se saliente a características
de pessoalidade e, concluindo, se, de fato, a expressão contextualmente admita
ou indique nuances de um ser distinto na divindade.
2.
רוּחַ־אֱלֹהִים E A CRIAÇÃO
A expressão רוּחַ, de fato, aparece pela primeira vez na Bíblia em Gen. 1:2
vinculada ao vocábulo אֱלֹהִים. O contexto de
criação, portanto, é indiscutível. No entanto, embora haja discussão quanto a רוּחַ־אֱלֹהִים sendo
o agente através do qual a criação acontece (NEVE, 1972; YOUNG, 1960-61) ou não, fato inegociável é que sua presença acha-se
registrada no texto.
Evidências intratextuais autenticam
não apenas a marcante presença do רוּחַ־אֱלֹהִים no relato da criação, como também sua pessoalidade, que
se evidencia pelo verbo Rahaf,
conforme será melhor elucidado adiante. Abordagem semelhantemente importante acerca
desta temática ora apresentada se observa no livro de Jó 33:4 onde diz: “O רוּחַ־אֱלֹהִים me
fez; o sopro do Todo-Poderoso me deu vida”.
3.
רוּחַ־אֱלֹהִים E O MINISTÉRIO PROFÉTICO
De
maneira muito clara no AT, nota-se a ativa atuação do רוּחַ no que
se refere ao dom profético. As atividades do נָבִיא (nabi - profeta) ou רֹאֶה (roeh - vidente) eram intimamente ligadas à ação,
i.e., à guia do רוּחַ,
que se apoderava daquele dando-lhe a capacidade de profetizar. A primeira
ocorrência em que se evidencia o רוּחַ tendo uma forte influência no que diz respeito a este contexto profético,
encontra-se em Números 11 onde se apresenta o relato da escolha de setenta
anciãos que ao receberam o רוּח
que estava sobre Moisés, passaram a profetizar. O texto é claro em demonstrar
que o fato de profetizarem estava diretamente ligado ao recebimento do רוּח, pois Medade e Eldade (que estavam entre
os inscritos, mas não se juntaram ao grupo dos setenta na tenda da
congregação), também receberam o רוּח
e passaram a profetizar como os demais no meio do arraial.
Semelhantemente,
pode-se ver a forte atuação do רוּח
ou רוּחַ־אֱלֹהִים no relato do profeta gentio
Balaão, conforme se acha registrado em Números 23 e 24. Ao receber propostas
financeiras de Balaque, rei de Moabe, para que amaldiçoasse os filhos de
Israel, Balaão se propõe a falar apenas o que o יהוה
lhe ordenasse. Em Números 24:1-2, é dito que ao contemplar Israel que estava
acampado no deserto, veio sobre este profeta o רוּחַ־אֱלֹהִים,
e, em face disto, ele dá início ao seu terceiro e quarto oráculos proféticos.
Mais uma vez, claramente a profecia se relaciona intimamente com o רוּחַ־אֱלֹהִים.
Estes episódios
apresentados acima não são casos isolados. Em todo o AT é notório a presença
marcante do רוּחַ־אֱלֹהִים em contextos proféticos, tais
como em II Crônicas 15:1 onde o profeta Azarias é tomado pelo רוּחַ־אֱלֹהִים e transmite Sua mensagem, fato
semelhante ao que se encontra em II Crônicas 24:20 onde o profeta Zacarias
passa por um episódio parecido; de
maneira especial, nos momentos iniciais da carreira monárquica de Saul, é dito,
conforme se apresenta em I Samuel 10:10 que ao encontrar um grupo de profetas a
descer do monte, o רוּחַ־אֱלֹהִים se apodera de Saul de tal maneira que este
começa a profetizar no meio deles, sendo até alvo de um dito que se tornou
popular na época: “Está também Saul entre os profetas?
Poderia
se encerrar esta seção com o comentário de Eichrodt (2005) no que se refere à
fala (palavra) provinda do profeta movido pelo רוּחַ: “Como um poder cósmico de Deus,
portanto, a palavra ocupa muito o espaço destes homens que no pensamento
popular foram ocupados pelo רוּחַ,
e os capacita para discernir o controle direto de Deus sobre a história”.
4.
רוּחַ־אֱלֹהִים E A HABILITAÇÃO ADMINISTRATIVA E ARTÍSTICAS
ARQUITETÔNICO-ARTESANAL
O רוּחַ־אֱלֹהִים também tem lugar nos contextos em que se notam dotações
para liderança governamental e mesmo bélicas, como semelhantemente o termo
figura de forma ativa em passagens relacionadas às projeções arquitetônicas e
artesanais ligadas à construção do tabernáculo mosaico. Quanto ao exercício de
liderança administrativa nota-se inicialmente o referido a José, que quando no
Egito ao interpretar o sonho de Faraó e prover medidas que solucionariam a
crise que se daria nos anos de fome, este acerca dele dissera: “Poderíamos
achar um homem como este, em quem haja o Espírito de Deus (רוּחַ־אֱלֹהִים)?” (Gen. 41:28). Nota-se mesmo nas palavras deste monarca
politeísta que a sua percepção da sugestão administrativo-preventiva expressa
por José seguida da interpretação do sonho – o que já sugere uma nuance
profético-revelatória, era algo supra-humano, algo, de fato, devido à
divindade, i.e., o רוּחַ־אֱלֹהִים. Ainda neste segmento
pode se notar episódios como o disposto em Num. 11 quando são apontadas setenta
pessoas para auxiliar Moisés nas atividades de julgar questões entre povo.
Nesta perspectiva em referindo-se ao período dos juízes J. M. Miller apontando
o papel destes como libertadores do povo, sinaliza que sob atuação do רוּחַ־אֱלֹהִים os
juízes geralmente tornavam-se em figuras militares (MILLER, 1996), administradores com conotações relativamente judiciais.
Notoriamente é percebido no livro de Juízes que por meio do רוּחַ יְהוָה representantes do povo foram capacitados para iniciativas que
os libertava dos opressores de modo diverso, proporcionando, assim, repouso
temporário. Portanto, como bem reporta Hildebrandt “em cada estágio da história
יְהוָה dá a Israel líderes que são habilitados pelo רוּחַ para seus vários papeis” (HILDEBRANDT, 1995).
5.
רוּחַ־אֱלֹהִים E SUAS CARACTERÍSTICAS DE PESSOALIDADE
5.1 PESSOALIDADE NO RELATO DA CRIAÇÃO
Conforme
já prenunciado acima, uma análise do verbo רָחַף
(Rahhaf - Pairar) (conjugado em Gen.1:2:מְרַחֶפֶת - Merahhephet - Pairava)
se faz necessário para melhor compreensão da pessoalidade do רוּחַ־אֱלֹהִים. Aspectos importantes se
destacam acerca deste verbo:
a)
Em nenhuma ocorrência no AT se registra seu emprego em substantivos que
denotem impessoalidade, como um vento, um sopro ou uma energia. Seu emprego em
Gênesis tem como sujeito רוּחַ־אֱלֹהִים (Espírito
de Deus) e não apenas רוּחַ
(espírito, sopro). Esta última opção não é registrada em nenhuma ocorrência no
AT.
b)
O verbo רָחַף será usado apenas duas vezes mais:
uma em Jer. 23:9 – “...todos os meus ossos estremecem...
(רָֽחֲפוּ)” – que é traduzido por estremecer, e outra, que
mais aproximada do sentido apresentado em Gen. 1:2 se encontra em Deu. 32:11 –
“Como a águia desperta a sua ninhada e voeja
(יְרַחֵף) sobre os seus filhotes, estende
as asas e, tomando-os, os leva sobre elas...” – onde o termo é traduzido por
voejar, mostrando o cuidado que a águia tem sobre seus filhotes.
Estas
implicações quanto ao רָחַף
sugere a proposição
de que o sujeito que recebe a ação verbal não reflete alguma força ou energia
impessoal, antes, seu significado pleno aponta para um ser pessoal ou pelo
menos diferente de um vento.
5.2
PESSOALIDADE EM
ISAÍAS
Abordagem igualmente
interessante acerca do רוּחַ se
nota nos escritos de Isaías. No capítulo 63:10-11 este vocábulo aparece
acompanhado de uma outra palavra sufixada קָדְשׁוֹ (Qodesho - seu Santo). Há apenas três ocorrências onde aparecem estes
vocábulos juntos קֹדֶשׁ רוּחַ (Qodesh Ruah - Espírito Santo) em todo o AT. Em Isaías 63: 10-11 o fenômeno ocorre duas vezes, uma em
cada verso, sendo que primeira ocorrência destes dois termos juntos sucede em
Salmo 51:11, com o vocábulo קֹדֶשׁ também
sufixado.
Isaías
63:10-11:
וְהֵ֛מָּה מָר֥וּ וְעִצְּב֖וּ אֶת־ר֣וּחַ
קָדְשׁ֑וֹ וַיֵּהָפֵ֥ךְ לָהֶ֛ם לְאוֹיֵ֖ב ה֥וּא נִלְחַם־בָּֽם׃
וַיִּזְכֹּ֥ר יְמֵֽי־עוֹלָ֖ם מֹשֶׁ֣ה עַמּ֑וֹ אַיֵּ֣ה׀ הַֽמַּעֲלֵ֣ם מִיָּ֗ם
אֵ֚ת רֹעֵ֣י צֹאנ֔וֹ אַיֵּ֛ה הַשָּׂ֥ם בְּקִרְבּ֖וֹ אֶת־ר֥וּחַ
קָדְשֽׁוֹ׃
Segundo Robert Morey (1996), esse texto de Isaías é um documento corroborativo que comprova a personalidade do Espírito Santo. Morey destaca dois aspectos que dão características pessoais ao Espírito Santo:
a) A expressãoוְעִצְּבוּ (weitsebu - entristecer, contristar) carrega em si
características de sentimentos comuns a seres pessoais e pensantes. Esta mesma
expressão aparece em II Sam. 19:1-2, quando discursa acerca da profunda
tristeza que Davi sentiu pela perda de Absalão, seu filho, e em Gen. 6:6 quando
ao ver a raça humana num grau elevado de degeneração pecaminosa, Deus “cai”
numa imensa tristeza em seu coração.
b) Numa análise da palavra מָרוּ (maru - desobediência, rebelião), Morey
acentua que só pode ser entristecido por causa de uma rebelião ou
desobediência, um ser pessoal e não uma mera força impessoal (MOREY, 1996).
Ainda
no livro de Isaías, veem-se mais ocorrências onde se pode identificar a
pessoalidade do Espírito Santo. No capítulo 40: 13-14, despois de uma sequência
de perguntas iniciadas no verso 12, os versos seguintes dão seguimento aos
questionamentos que claramente propõem tratar-se de um ser pessoal:
Isaías
40:13-14:
מִֽי־תִכֵּ֥ן אֶת־ר֖וּחַ יְהוָ֑ה וְאִ֥ישׁ
עֲצָת֖וֹ יוֹדִיעֶֽנּוּ׃
אֶת־מִ֤י נוֹעָץ֙ וַיְבִינֵ֔הוּ וַֽיְלַמְּדֵ֖הוּ בְּאֹ֣רַח מִשְׁפָּ֑ט
וַיְלַמְּדֵ֣הוּ דַ֔עַת וְדֶ֥רֶךְ תְּבוּנ֖וֹת יוֹדִיעֶֽנּוּ׃
13 “Quem guiou o Espírito do SENHOR?
Ou, como seu conselheiro, o ensinou?”
14 “Com quem tomou ele conselho,
para que lhe desse compreensão? Quem o instruiu na vereda do juízo, e lhe
ensinou sabedoria, e lhe mostrou o caminho de entendimento?”
Semelhantemente
as perguntas feitas a Jó, no fim de seu livro, estas questões não carecem de
respostas uma vez que se trata de perguntas retóricas, tendo uma mesma
resposta: ninguém. Entretanto, nestes
versos percebe-se um ser que não precisa ser guiado; que não precisou de
conselheiro, mas é sabedor; que não precisou de conselhos para ter compreensão
e que é instruído na vereda do juízo, que tem sabedoria e entendimento.
Naturalmente que aplicar estas características todas, a uma mera força ou
vento, uma energia impessoal é, utilizar-se de bastante eufemismo, no mínimo
uma incongruência. Somente um ser pessoal, pensante e, por que não, divino
(comparando-se a Jó), para possuir tais características.
Ainda em outras ocorrências não abordadas aqui, mas com
significativas nuances quanto à pessoalidade do רוּחַ são atestadas
em Isaías nos capítulos 48:12-17, com ênfase no v. 16, o capítulo 42:1 e o 61:1.
6. רוּחַ־אֱלֹהִים E SUA DISTINGUIBILIDADE NA DIVINDADE: UM CONTRASTE ENTRE רוּחַ־אֱלֹהִים E רוּחַ־אֱלֹהִים רָעָה
Um olhar atentivo sobre o AT
em sua língua original demonstrará certa similaridade nas expressões que são
traduzidas para o português e outras línguas por “Espírito de Deus” e “espírito
maligno”. Numa tradução bastante próxima da originalidade, i.e., sem nenhuma
interpretação dos termos lê-se רוּחַ־אֱלֹהִים רָעָה (Ruah Elohim raah - Espírito de Deus mau) em 1 Sam. 18:10 assim: Espírito de Deus mau. Obviamente
que a tradução “espírito mal da parte de Deus” acaba por ser interpretativa. A
ideia era de que o mal só atuaria sob permissão de Deus. Em face disto, o
pensamento desenvolvido fundamentava-se em que Deus era o causador, uma vez que
nada acontecia sem seu consentimento. Este, entretanto, é um tópico a que este
trabalho não se propõe resolver e nem mesmo abordar. Fato é que a expressão רוּחַ־אֱלֹהִים (Espírito de Deus) acrescida de רָעָה , portanto, “espírito
de Deus mau” incide em usos distintamente profano (LYS, 1962).
A expressão רוּחַ־אֱלֹהִים רָעָה (Ruah Elohim raah - Espírito de Deus mau) acontece
apenas três vezes no AT e num mesmo contexto, i.e., dentro da história do rei
Saul: 1 Sam. 16:15-16 e 1 Sam. 18:10. Uma expressão similar ocorre apenas uma
vez no livro de 1 Sam. 19:9: רוּחַ יְהוָה רָעָה (espírito do
Senhor mau). Entretanto, a expressão equivalente רוּחַ־רָעָה (espírito mau) acontece mais três vezes, sendo uma no
livro de Juízes 9:23 e outras duas dentro do contexto mencionado da história de
Saul: 1 Sam. 16:14 e 1 Sam. 16:23. O primeiro texto (1 Sam.
16:14) traz consigo certa importância no que se refere à compreensão deste
assunto: “Tendo-se retirado de Saul o Espírito
do SENHOR (רוּחַ יְהוָה), da parte deste um espírito maligno (רוּחַ־רָעָה מֵאֵת יְהוָה) o atormentava.” A partir deste texto se principia a
compreensão de que o espírito mau (רוּחַ־רָעָה) que
atormentava Saul não era o mesmo Espírito do SENHOR (רוּחַ יְהוָה), pois este
havia se retirado dele. O espírito mau que o atormentava era um demônio,
conforme afirma o historiador Flávio Josefo (2008):
“Saul, ao contrário, foi tomado por um espírito mau, que
parecia querer esganá-lo a todo instante. Os médicos não encontraram outro
remédio para esse mal a não ser mandar algum músico competente cantar hinos
sagrados, ao som de harpa, quando o demônio o agitasse. Procuraram por toda
parte e disseram-lhe que somente uma pessoa poderia fazê-lo: um dos filhos de
Jessé, de nome Davi, que era não somente excelente músico, mas também muito
belo e capaz de servi-lo na guerra.”
Esta dicotomia entre o espírito
maligno e o Espírito do Senhor é percebida nos escritos de Qumran (HORN, 1996). Teologicamente o vocábuloרוּחַ era aplicado tanto no contexto em que se
referia ao espírito mal quanto ao
Espírito Santo de Deus. Uma das doutrinas básicas desenvolvidas em Qumran
postulava a existência de dois espíritos que atuavam no comportamento humano: o
espírito da verdade e o espírito da maldade. Ambos eram designados por Deus
para atuarem nos filhos da justiça e nos filhos da maldade respectivamente.
Evidencia-se logicamente uma espécie de predestinação nesta abordagem, o que também
não é o foco do presente estudo. Contudo, a marcante crença destes dois
espíritos antagônicos, alude ao tema proposto pelo presente trabalho.
No
pensamento rabínico desenvolvido no período intertestamentário, o Espírito de
Deus (רוּחַ־אֱלֹהִים) é um modo de Sua auto revelação, bastante evidenciado no
santuário que era o lugar da presença de Deus. Esta
crença rabínica sofreu declínio no período em que o I Templo foi destruído,
pois, segundo esta proposta, a destruição do Templo causou a inatividade do
Espírito (HORN,
1996).
Voltando-se
mais propriamente para o estudo da expressão que é o foco desta seção רוּחַ־אֱלֹהִים רָעָה (Ruah Elohim raah - Espírito de Deus mau), é importante observar como os judeus que compuseram a LXX a
traduziram: ora usando πνεῦμα
πονηρὸν (espírito mau), ora
πνεῦμα πονηρὸν παρὰ κυρίου (Pneuma ponerón pará kuriou - espírito mau desde o Senhor) ou ora πνεῦμα κυρίου πονηρὸν (espírito do Senhor mau). Veja-se abaixo os paralelos
linguísticos entre as versões grega, hebraica e português.
1 Samuel 16:14
καὶ
πνεῦμα κυρίου ἀπέστη ἀπὸ Σαουλ καὶ ἔπνιγεν αὐτὸν πνεῦμα πονηρὸν παρὰ κυρίου.
וְר֧וּחַ יְהוָ֛ה סָ֖רָה מֵעִ֣ם שָׁא֑וּל וּבִֽעֲתַ֥תּוּ רֽוּחַ־רָעָ֖ה מֵאֵ֥ת יְהוָֽה׃
Tendo-se retirado de Saul o Espírito do SENHOR, da parte
deste um espírito maligno o atormentava.
1 Samuel 16:15
καὶ εἶπαν οἱ παῖδες
Σαουλ πρὸς αὐτόν ἰδοὺ δὴ πνεῦμα κυρίου
πονηρὸν πνίγει σε.
וַיֹּאמְר֥וּ עַבְדֵֽי־שָׁא֖וּל אֵלָ֑יו הִנֵּה־נָ֧א רֽוּחַ־אֱלֹהִ֛ים רָעָ֖ה מְבַעִתֶּֽךָ׃
Então, os servos de Saul lhe
disseram: Eis que, agora, um espírito maligno, enviado de Deus, te atormenta.
1 Samuel 16:16
εἰπάτωσαν
δὴ οἱ δοῦλοί σου ἐνώπιόν σου καὶ ζητησάτωσαν τῷ κυρίῳ ἡμῶν ἄνδρα εἰδότα ψάλλειν
ἐν κινύρᾳ καὶ ἔσται ἐν τῷ εἶναι πνεῦμα
πονηρὸν ἐπὶ σοὶ καὶ ψαλεῖ ἐν τῇ κινύρᾳ αὐτοῦ καὶ ἀγαθόν σοι ἔσται καὶ ἀναπαύσει
σε.
יֹאמַר־נָ֤א אֲדֹנֵ֙נוּ֙ עֲבָדֶ֣יךָ לְפָנֶ֔יךָ יְבַקְשׁ֕וּ אִ֕ישׁ יֹדֵ֖עַ
מְנַגֵּ֣ן בַּכִּנּ֑וֹר וְהָיָ֗ה בִּֽהְי֙וֹת עָלֶ֤יךָ רֽוּחַ־אֱלֹהִים֙
רָעָ֔ה וְנִגֵּ֥ן בְּיָד֖וֹ וְט֥וֹב לָֽךְ׃ פ
Manda, pois, senhor nosso, que teus servos, que estão em
tua presença, busquem um homem que saiba tocar harpa; e será que, quando o
espírito maligno, da parte do SENHOR, vier sobre ti, então, ele a dedilhará, e
te acharás melhor.
1 Samuel 16:23
καὶ
ἐγενήθη ἐν τῷ εἶναι πνεῦμα πονηρὸν ἐπὶ
Σαουλ καὶ ἐλάμβανεν Δαυιδ τὴν κινύραν καὶ ἔψαλλεν ἐν τῇ χειρὶ αὐτοῦ καὶ ἀνέψυχεν
Σαουλ καὶ ἀγαθὸν αὐτῷ καὶ ἀφίστατο ἀπ᾽ αὐτοῦ τὸ πνεῦμα τὸ πονηρόν
וְהָיָ֗ה בִּֽהְי֤וֹת רֽוּחַ־אֱלֹהִים֙
אֶל־שָׁא֔וּל וְלָקַ֥ח דָּוִ֛ד אֶת־הַכִּנּ֖וֹר וְנִגֵּ֣ן בְּיָד֑וֹ וְרָוַ֤ח
לְשָׁאוּל֙ וְט֣וֹב ל֔וֹ וְסָ֥רָה מֵעָלָ֖יו ר֥וּחַ
הָרָעָֽה׃ פ
E sucedia que, quando o espírito maligno, da parte de
Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a harpa e a dedilhava; então, Saul sentia
alívio e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele.
É digno de nota algumas nuances que
se extraem deste último texto:
a)
Não ocorre o termo רוּחַ־אֱלֹהִים רָעָה.
b)
Entretanto, neste verso,
o termo רוּחַ־אֱלֹהִים (Espírito
de Deus) que aparece no início, é intercambiado com רוּחַ הָרָעָה (espírito
mal/maligno) no final do verso, como estando fracionado diferentemente do que
ocorre no verso 16 em que a expressão vem completa: רוּחַ־אֱלֹהִים רָעָה (espírito de Deus mau). Isto, de maneira precisa,
clarifica a ideia de que o termo רוּחַ־אֱלֹהִים רָעָה é um espírito
maligno, um demônio.
c) Esta visão é reforçada quando se toma a mesma expressão
na LXX. Os escritores judeus da versão LXX entenderam que os termosרוּחַ־אֱלֹהִים (e apenas neste contexto) e רוּחַ הָרָעָה são traduzidos
da mesma maneira: πνεῦμα πονηρὸν (espírito
maligno).
Numa breve análise do NT, também se
notará que a mesma expressão usada na LXX (πνεῦμα πονηρὸν) para traduzir (רוּחַ־אֱלֹהִים רָעָה) é utilizada quando claramente se fala da ação pessoal de um
demônio, conforme se observa abaixo:
Lucas 7:21
ἐν ἐκείνῃ
τῇ ὥρᾳ ἐθεράπευσεν πολλοὺς ἀπὸ νόσων καὶ μαστίγων καὶ πνευμάτων πονηρῶν καὶ τυφλοῖς πολλοῖς ἐχαρίσατο βλέπειν.
Naquela mesma hora, curou Jesus
muitos de moléstias, e de flagelos, e de espíritos malignos; e deu vista a
muitos cegos.
Lucas 8:2
καὶ
γυναῖκές τινες αἳ ἦσαν τεθεραπευμέναι ἀπὸ πνευμάτων
πονηρῶν καὶ ἀσθενειῶν, Μαρία ἡ καλουμένη Μαγδαληνή, ἀφ᾽ ἧς δαιμόνια ἑπτὰ ἐξεληλύθει,
...e também algumas mulheres que haviam sido curadas de
espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíram
sete demônios;
Atos 19:12
ὥστε
καὶ ἐπὶ τοὺς ἀσθενοῦντας ἀποφέρεσθαι ἀπὸ τοῦ χρωτὸς αὐτοῦ σουδάρια ἢ σιμικίνθια
καὶ ἀπαλλάσσεσθαι ἀπ᾽ αὐτῶν τὰς νόσους, τά τε πνεύματα τὰ πονηρὰ ἐκπορεύεσθαι.
...a ponto de levarem aos enfermos lenços e aventais do
seu uso pessoal, diante dos quais as enfermidades fugiam das suas vítimas, e os
espíritos malignos se retiravam.
Atos 19:13
Ἐπεχείρησαν
δέ τινες καὶ τῶν περιερχομένων Ἰουδαίων ἐξορκιστῶν ὀνομάζειν ἐπὶ τοὺς ἔχοντας τὰ πνεύματα τὰ πονηρὰ τὸ ὄνομα τοῦ κυρίου
Ἰησοῦ λέγοντες· ὁρκίζω ὑμᾶς τὸν Ἰησοῦν ὃν Παῦλος κηρύσσει.
E alguns judeus, exorcistas ambulantes, tentaram invocar
o nome do Senhor Jesus sobre possessos de espíritos malignos, dizendo:
Esconjuro-vos por Jesus, a quem Paulo prega.
Atos 19:16
καὶ
ἐφαλόμενος ὁ ἄνθρωπος ἐπ᾽ αὐτοὺς ἐν ᾧ ἦν τὸ πνεῦμα τὸ πονηρόν, κατακυριεύσας ἀμφοτέρων ἴσχυσεν κατ᾽ αὐτῶν ὥστε
γυμνοὺς καὶ τετραυματισμένους ἐκφυγεῖν ἐκ τοῦ οἴκου ἐκείνου.
E o possesso do espírito maligno saltou sobre eles,
subjugando a todos, e, de tal modo prevaleceu contra eles, que, desnudos e
feridos, fugiram daquela casa.
Este mesmo parecer pode-se averiguar
no livro Deuterocanônico de Tobias onde a versão da LXX não diferencia πνεῦμα
πονηρόν (espírito maligno) de
δαιμόνιον (demônio), sendo os
dois classificados como um mesmo ser, como também se vê na Vulgata Latina.
Tobias 6:8
καὶ
εἶπεν αὐτῷ ἡ καρδία καὶ τὸ ἧπαρ ἐάν τινα ὀχλῇ δαιμόνιον ἢ πνεῦμα πονηρόν ταῦτα δεῖ καπνίσαι ἐνώπιον ἀνθρώπου ἢ
γυναικός καὶ οὐκέτι οὐ μὴ ὀχληθῇ
Et respondens angelus, dixit ei: Cordis ejus particulam
si super carbones ponas, fumus ejus extricat omne genus daemoniorum sive a
viro, sive a muliere, ita ut ultra non accedat ad eos.
Bíblia de Jerusalém: “Ele respondeu: o coração e o fígado
servem para serem queimados na presença de homem ou mulher atacados por algum
demônio ou espírito mau. A fumaça espanta o mal e faz o demônio desaparecer
para sempre.”
Uma vez identificado que רוּחַ־אֱלֹהִים רָעָה é o mesmo πνεῦμα πονηρόν ou δαιμόνιον, i.e., uma entidade pessoal, distinta da divindade,
naturalmente surge o questionamento: Se a expressão רוּחַ־אֱלֹהִים רָעָה, é identificada assim, como um ser distinto e pessoal (o
demônio) e não um lado mau de Deus, conforme ficou esclarecido neste trabalho,
por que a expressãoרוּחַ־אֱלֹהִים em demais passagens no AT (como no relato da
criação e no ministério profético, na
habilitação administrativa e artísticas arquitetônico-artesanal e em outras
abordagens mencionadas no trabalho), também
não se pode aplicar a um ser pessoal e distinto? Se o רוּחַ־אֱלֹהִים רָעָה deve
ser entendido como um ser pessoal, distinto e fora da divindade, i.e., um
demônio, fica, evidenciado, através desta correlação que a expressão antitética
a esta, a saber, רוּחַ־אֱלֹהִים, é também um
ser pessoal, distinto e diferente do Pai e do Filho, mas pertencente à mesma
Divindade.
CONCLUSÃO:
A
presente pesquisa buscou reunir a partir da análise de textos bíblicos, estes
como em sua forma final, diversas nuances do que se sugere acerca da expressão רוּחַ־אֱלֹהִים. As informações reunidas em blocos temáticos externaram
que desde a criação o ser רוּחַ־אֱלֹהִים já estivera
participativo. Fora salientado seu envolvimento com a capacitação de líderes
que julgavam e orientavam a nação e, de igual modo, nos momentos históricos em
que personagens eram apontados para efetivar uma obra de libertação e condução
do povo, o que se dera, de maneira muito acentuada, na era dos juízes.
Abordou-se também que fora por meio do “encher do רוּחַ־אֱלֹהִים” que se dera a
criação do tabernáculo mosaico e suas diversas minúcias ornamentais, isto de
modo similar à criação do cosmos em Gen 1.
Observou-se
que de modo, relativamente, geral as dimensões do ministério profético estivera
ligado e em plena dependência da atuação do Espírito de Deus (רוּחַ־אֱלֹהִים), e de fato, é no discorrer do ministério dos profetas que a
noção do רוּחַ־אֱלֹהִים ganha mais expressão e proporcionalmente mais informações
acerca dele passa a ter lugar.
Trabalhando-se
os tópicos pessoalidade e distinguibilidade, fora enredado tópicos quanto às
utilizações aproximadas dos termos רוּחַ־אֱלֹהִים e רוּחַ־אֱלֹהִים רָעָה dispostos nos textos de 1 Sam.
16:15-16; 18:10 e 19:9, estes como proposições que corroboram as prováveis pessoalidade e distinguibilidade.
Sinalizou-se ainda que nuances de pessoalidade em רוּחַ estão,
portanto, acentuadamente ligadas aos termos אֱלֹהִים e יְהוָה provendo, assim, uma desafiadora identificação com estes
termos, o que dificulta a percepção de sua distinguibilidade. Esta, por sua
vez, se expressa, razoavelmente, perceptiva no material isaínico. É, portanto,
consenso na erudição bíblica – o que se pode dizer ainda mais enfaticamente da
veterotestamentária, que a acentuidade preeminente na obra do רוּחַ־אֱלֹהִים sobrepuja em muito as sugestivas quanto à sua pessoalidade e
mais ainda sua distinguibilidade.
Deve-se,
portanto, reconhecer que construir argumentação para a pessoalidade e
distinguibilidade do ser רוּחַ־אֱלֹהִים é tarefa um
tanto difícil. No entanto, a observação honesta, atentiva e responsável do
material bíblico o faz possível. Destarte, a análise bíblica intertextual,
considerando-se o seu material como disposto em sua forma canônica, permite
construir o conceito teológico do רוּחַ־אֱלֹהִים num fluxo
ascendente, acentuando primordialmente a natureza de sua obra, isto em termos
impessoais, característica esta que não implica necessariamente na excludência
das nuances de sua pessoalidade. Esta, por sua vez, em forte identificação com אֱלֹהִים/ יְהוָה que até tem sido sugerido impressões de uma extensão da
pessoalidade de אֱלֹהִים/,יְהוָה no entanto expressões isaínicas favorecem a percepção de certa
distinguibilidade, visto ser a maneira mais adequada e sintaticamente
praticável de abordar-se os textos dispostos nos capítulos 40: 13-14, 48:12-17, com ênfase no v. 16, 42:1; 61:1 e 63:8-11.
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